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Em entrevista ao site do Icict, o psiquiatra e psicanalista Carlos Estellita-Lins, coordenador do PesqSUI – Grupo de Pesquisa de Prevenção ao Suicídio, do Laboratório de Informação Científica e Tecnológica em Saúde – LICTS, do Icict, fala sobre adolescência, suicídio e saúde pública.
Ser adolescente hoje é mais difícil do que há 10 ou 30 anos?
Esse é um assunto que está em pauta nas nossas pesquisas. Talvez essa pergunta se insira em um contexto maior que pergunta se a saúde mental e a saúde em geral têm realmente avançado, se as pessoas estão mais saudáveis com a vida contemporânea cada vez mais atravessada por tecnologias digitais e por dispositivos contemporâneos como as redes sociais ligadas à web. Há suspeita de que uma sobrecarga de informação pode ser nociva tem sido investigada nos autismos (transtornos do desenvolvimento).
Tivemos um primeiro momento de desconfiança ou pessimismo quanto à saúde mental do adolescente numa época high-tech, seguido depois por um momento de profundo otimismo com a internet, e agora talvez se inicie uma fase de reflexão mais aprofundada. Não se trata de ser otimista ou pessimista, mas de avaliar alguns aspectos específicos. Um deles diz respeito exatamente a influência da imagem e da vida digital no jovem e em seu crescimento e desenvolvimento, especialmente na saúde do adolescente. Sabemos que imagens podem ser violentas. Cabe integrar resultados de especialistas em inúmeras disciplinas. Lembremos, também, que a própria adolescência pode ser vista como uma construção social relativamente recente ao invés de ser tomada como fato biológico inexorável.
A saúde no país está discutindo a questão do suicídio entre adolescentes?
O suicídio é um problema de vocação interdisciplinar e colaborativa. Ao acompanhar essa problemática, a minha impressão é que temos que juntar esforços e nos articular com outros setores interessados no adolescente e no jovem.
O problema que se vive no Brasil é que a psiquiatria da infância e da adolescência se encontra completamente desarticulada enquanto uma especialidade. E ela seria, de direito, um espaço multidisciplinar, transdisciplinar para albergar esse tipo de reflexão. Encontramos os grandes centros psiquiátricos desenvolvendo pouca ou quase nenhuma reflexão sobre saúde coletiva e saúde mental do adolescente e verifica-se, portanto, uma área interdisciplinar importante que não vem sendo ocupada satisfatoriamente no ensino e pesquisa.
Temo que a psiquiatria infantil e do adolescente tenha sido aparelhada pela lógica do ensaio clínico (clinical trial) a serviço de uma psicofarmacologia afastada da terapêutica e da efetividade. A Fiocruz tem responsabilidades por integrar em seu elenco de pesquisadores grandes epidemiologistas clínicos e um vasto contingente de pesquisadores em saúde coletiva que podem discutir o assunto.
O cyberbullying aumenta a propensão de suicídios entre adolescentes?
O cyberbullying é apenas uma variante digital de muitas outras situações de bullying e de violência. Participo de um trabalho sobre a imagem no processo de saúde na doença, no curso de Cinema Etnográfico (oferecido pelo PPGICS), onde temos tentado refletir isso. Aí entra certamente a netnografia e outras formas de pesquisa da web com respeito a violência da imagem e seus desdobramentos; a construção da identidade, a avalanche contemporânea de utilização da imagem nas redes sociais.
É uma questão que Susan Sontag, levanta antes de morrer em 2003, no livro “Olhando o sofrimento dos outros”, que consiste na insensibilização progressiva com as imagens violentas e de violência em qualquer midia. Então, quando aparece um jovem se suicidando online e os outros assistem, ou quando alguém pede instruções de como se suicidar e efetivamente as recebe de forma anônima na rede, temos aí eventos novos que talvez devam ser pensados sob a rubrica mais geral dessa violência e de sua banalização.
Outro aspecto diz respeito a essas frentes de comunicação, onde o jovem tímido, sofrendo de fobia social, utiliza o canal digital como um de seus poucos acessos ao mundo, e mesmo assim vai ser rechaçado, agredido, atingido nesses canais ou através desses canais. O cyberbullying seleciona indivíduos vulneráveis. Estamos falando de pessoas vulneráveis tanto por afastamento social, dificuldades ou inabilidades sociais, falta de contato com o mundo. Ocasionalmente trata-se de situação inerente a própria adolescência – pois sabemos que isso acontece, porque muitos de nós passamos por isso e superamos, mas outros não. Possivelmente estas pessoas vão ser atingidas duramente pelo cyberbullying. Ainda podemos imaginar as vezes em que essa dificuldade é a ponta de um iceberg que indica um processo psicótico em curso, o uso abusivo de drogas, o afastamento da vida social e cotidiana, ou ainda uma situação depressiva distinta, mais especificamente a distimia.
As emergências poderiam dar conta daqueles que estão em crise e próximos a tentar o suicídio?
Os psiquiatras e psicólogos recebem pouco ou nenhum treinamento para tratar urgências ou situações de risco de suicídio. Ainda inexiste nesta data no Brasil um especialista em urgências. Vivemos uma crise importante no que diz respeito às UPAS. Esta solução, ou remendo, nunca foi suficiente para dar conta das atividades de emergência. Sabemos que surgiu no contexto das epidemias de dengue e que o hemisfério norte não trabalha nesta direção. A assistência suplementar que se ofereceu rivalizando com o SUS como alternativa capaz, considerada tão importante pelo cidadão de nossas megacidades, se mostra atualmente em crise e igualmente incapaz de dar conta dos atendimentos de emergência assim como do risco de suicídio;, o SUS tampouco. Então, verificamos um grave hiato nas emergências, uma enorme incapacidade para tratar as crises que levam ao suicídio, de assistir as pessoas em risco e também aqueles que acabam de fazer uma tentativa de autoextermínio.
Temos tentado trabalhar no contato pré-hospitalar, valorizando a Rede Samu, que efetivamente avançou nos últimos governos, mas não conseguimos avançar nas emergências gerais, que são espaços de cuidado, não só para agravos físicos (acidentes automobilísticos, com armas de fogo, violência física, doenças infecciosas), mas também os aspectos psíquicos ligados às tentativas de suicídio e os agravos psíquicos.
A reforma psiquiátrica ainda não conseguiu avançar no sentido de levar a emergência dita psiquiátrica para dentro do hospital geral. Isso é uma palavra de ordem compartilhada por muitos e que ainda não se cumpriu. Precisamos assistir melhor as pessoas em sofrimento psíquico, de modo integrado, de acordo com princípios de integralidade. Enquanto existir UPAS, pronto-atendimentos, urgências psiquiátricas e outros dispositivos cuja história desabona e as pesquisas condenam – jamais se cumprirá a integralidade que os cidadãos merecem! Se pudermos assistir melhor as pessoas em crise identificando risco e tomando medidas protetoras, estaremos lidando melhor com o suicídio, realizando a prevenção ao suicídio em um nível absolutamente necessário. É preciso lembrar que na adolescência a complexidade no manejo das urgências aumenta com risco tanto de negligência como de iatrogenia.
Como os pais navegam com tudo isso?
Tem um hiato digital entre pais e filhos. Espera-se que esses jovens sejam tão hábeis na internet como nós fomos ao usar a televisão, nós mais que nossos pais, e como eles foram ao usar o rádio, mais hábeis que nossos avós. Ao mesmo tempo, há uma equivalência, pois cada um desses canais midiáticos modifica, acrescenta e traz a mesma questão que é a questão do público, de tornar público. De algum modo, vivemos uma crise do público que não é recente, que remonta ao iluminismo, remonta a um problema da razão, de compartilhamento de experiências sociais. Talvez esta crise esteja mais visível e radical. No lugar de um conflito pais versus filhos desenha-se um confronto entre a família mínima contemporânea e a internet. Observe-se por exemplo recursos tipo “controle dos pais” nas interfaces digitais.
Acho que a saúde tem um papel a desempenhar nisso. Vemos hoje um interesse da Reforma Obama pelas nossas reflexões sul-americanas sobre a saúde coletiva e a ideia de uma saúde compartilhada. A saúde é um elemento chave e, dentro dela, a questão do sofrimento do doente é uma questão política estratégica. Eu faço esse desvio para trazer os pais à cena no sentido de que eles podem estar digitalmente alienados ou não incluídos, mas vivem experiências no núcleo familiar que são novas, que precisam de novas soluções, que demandam novas respostas. Por outro lado, é claro que não são tão novas assim, que continuamos imersos num horizonte de vida social marcada por questões de fronteira, de margem, de comunicação-segregação, de experiências discriminatórias. Neste panorama penso que a hospitalidade, a atitude de cuidado, possa ser uma resposta.
A ferramenta digital constitui uma nova arena de confrontos que interessa a uma concepção de saúde ecológica, transdisciplinar e pespectivista. Na própria noção de cyberbullying, que não sei se é adequada, aparece a questão de pensar a violência e construir uma sociedade republicana e democrática.
Acho que é menos interessante pensarmos em novos mecanismos de digitais de controlar os jovens, censurá-los, fiscalizá-los, do que talvez repensar o que é viver coletivamente e continuar nessa tarefa de dar uma nova resposta a esse velho projeto kantiano de uma razão universal que jamais realizamos.
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