Em entrevista, Cristina Guimarães fala sobre acesso aberto

por
Fernanda Marques (Portal de Periódicos/Fiocruz)
,
13/05/2015

Nesta entrevista ao Portal de Periódicos, a coordenadora da especialização sobre “Políticas de Acesso Livre: repositórios e periódicos eletrônicos” (Icict/Fiocruz) aborda a história da instituição da ciência moderna e sua dinâmica, contextualizando transformações nas editorias científicas até os atuais desafios do acesso aberto.

Portal de Periódicos: Qual o diferencial do Curso de Especialização em Informação Científica e Tecnológica em Saúde, em 2015?

Cristina Guimarães: Essa especialização surgiu há 11 anos, quando o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) se mobilizava para ser uma unidade técnico-científica da Fiocruz. A informação científica já era objeto da prática institucional, especialmente pela responsabilidade na gestão do conjunto de bibliotecas da Fiocruz. Então, naturalmente, também passa a ser objeto de ensino e pesquisa, até como forma de despertar um fazer crítico e ampliar o campo de atuação profissional. O curso está estruturado em processos clássicos dos estudos de informação discutidos na área de Ciência da Informação: acesso/fontes de informação (identificação, tipologia, localização, formas de acesso, busca retrospectiva, pesquisa bibliográfica etc.); 2) organização da informação (linguagens, padrões, formatos, indexação, sistemas, plataformas, gestão); 3) comunicação da informação científica (a produção e o fluxo da informação no âmbito da ciência e entre a ciência e seus diversos parceiros e usuários na sociedade); 4) uso/avaliação da informação (relação da ciência com as políticas públicas; estudos de demandas e usos de informação; análise bibliométrica da produção científica). Tais processos são orientados por contextos políticos e pelas tecnologias de informação e comunicação. Por isso, a cada edição, o curso se baseia numa questão. Em 2015, vamos discutir as políticas de acesso aberto e suas duas verticalidades – os repositórios institucionais e os periódicos de livre acesso.

PP: A senhora menciona o processo de comunicação. Para o professor Jack Meadows, da Universidade de Loughborough (Inglaterra), a comunicação da ciência é tão essencial quanto a própria pesquisa e seus resultados. Como se poderia exemplificar esse papel central da comunicação na ciência?

Cristina Guimarães: Ao falar sobre a centralidade da comunicação, Meadows ilumina o sistema social da ciência. A Ciência é uma instituição, o que significa ter valores, normas, ética, princípios de organização. A ciência moderna nasceu comprometida com a abertura e a ampla circulação de suas ideias e proposições. Na época medieval, a lógica era o segredo (por exemplo, a alquimia). Na Europa do século XVII, uma feliz conjugação de interesses, oportunidades e contingências acabaram por propipiciar forças que venceram essa herança medieval e orientaram a emergência de um esforço coletivo de investigação sobre a natureza do mundo físico. A organização dessa coletividade pediu um conjunto de convenções sociais e de estruturas de incentivo que moldaram o nascimento da República da Ciência. No início, eram as reuniões de pessoas interessadas em debater certos temas. Depois, as trocas de correspondências. E, em seguida, os periódicos. A comunicação foi um atributo essencial na instituição da ciência e em sua organização social. Não basta ter uma proposta genial para o entendimento do mundo ou para a resolução de algum problema: é preciso comunicá-la, colocá-la para avaliação.

PP: O livre intercâmbio de ideias e os debates públicos marcaram o nascimento da ciência moderna. Em algum momento, porém, o conhecimento se converteu em mercadoria...

Cristina Guimarães: A ‘privatização’ – no sentido de conferir a alguém o direito de explorar economicamente um conhecimento – sempre existiu. O sistema de patentes nasce justamente quando o conhecimento começa a ter o potencial de alterar os processos produtivos e, portanto, apresenta um valor de mercado. Só que isso tem um custo. A Segunda Guerra Mundial é um momento de inflexão no empreendimento científico, particularmente em escala. Surge, por exemplo, o transistor, abrindo todo o campo das tecnologias de informação e comunicação. Essa época demarca o que Derek de Solla Price, um grande historiador da ciência, chamou de big science. A ciência de ponta passa a consumir um valor excepcional de investimentos em infraestrutura, equipamentos e pessoas. Emerge o modelo dos institutos de pesquisa, espaços privilegiados de pesquisa e desenvolvimento (P&D), processo que se intensifica com a Guerra Fria. A produção do conhecimento fica muito cara e passa a ter um impacto enorme na geopolítica mundial e o Estado já não consegue financiar tudo isso. O setor privado começa a investir e a explorar economicamente o conhecimento. É essencial resguardar um mínimo de lucro para alimentar a roda da produção de conhecimento, inovação e tecnologia. A grande questão é: qual o ponto de equilíbrio? O problema é quando isso se exacerba e inviabiliza – ou torna muito iníquos – a distribuição e o acesso aos frutos do conhecimento. Voltando ao tema central da nossa conversa, a explosão da ciência e, consequentemente, do volume de informação produzida após a Segunda Guerra Mundial cria também uma espécie de terceiro setor, o de editoria científica.

PP: Como se comporta esse terceiro setor?

Cristina Guimarães: Editoria científica é um terceiro setor de business fortíssimo. Inicialmente, as editorias estavam ligadas a universidades, sociedades de classe, associações científicas. Quando a ciência começa a crescer rapidamente, são necessários mais e mais periódicos para dar fluxo ao que está sendo produzido. As entidades tradicionais não dão conta dessa demanda e o setor privado vai, aos poucos, dando contornos as atuais grandes casas editoriais. A ciência explode e é preciso comunicá-la para que avance. O setor editorial cumpre um papel fundamental neste sentido. Só que, novamente, virou business – e caríssimo –, o que produz muita iniquidade. Quem está no centro, na frente de pesquisa, mais “produz” do que consome periódicos. Quem depende de periódicos – e paga caro por eles – é o pesquisador que está na periferia e precisa ter acesso à informação para se manter atualizado com o estado da arte de sua área. Há uma grande distância entre centro e periferia na perspectiva do acesso à informação. Porque o custo da capilarização do conhecimento é brutal, e envolve não só o custo dos periódicos (por exemplo: o custo do deslocamento para participar de eventos).

PP: A iniciativa privada entrou no ramo da editoria científica porque o setor público não estava dando conta da demanda, dos investimentos necessários. O movimento pelo acesso aberto (AA), então, é um movimento para que o setor público reassuma esses investimentos, esse custo. Estamos preparados para isso agora?

Cristina Guimarães: O acesso aberto tem custo (não se deve confundir aberto com livre). Mas, como o movimento do acesso aberto é recente no Brasil e no mundo, essas questões de qual o custo e quem vai assumi-lo ainda estão sendo discutidas. De qualquer modo, existe hoje um diferencial, que é, ao mesmo tempo, uma vantagem e um desafio: as plataformas são livres. O acesso aberto está fundamentalmente assentado nas tecnologias de informação e comunicação e na internet. Não há custo de circulação. O desafio que perdura é da ordem da adesão ao movimento do acesso aberto.

PP: Como o setor privado está se comportando diante dessa nova realidade?

Cristina Guimarães: O setor privado também está se adaptando, procurando encontrar seu lugar nesse momento de abertura e nesse cenário de novos players. E, claro, procurando por estratégias que mantenham a saúde econômica do setor. Dentre essas estratégias, nasceu um modelo diferente de publicação, em que os artigos estão em acesso aberto para o leitor, mas o pesquisador-autor tem que pagar para publicar seus trabalhos. Ou seja, as grandes casas editoriais estão, sim, adotando o modelo da abertura, mas não absorvendo seu custo. Antes, o custo recaía sobre a instituição à qual o pesquisador-autor está vinculado, mediante o pagamento de taxa de publicação, que pode chegar a milhares de dólares, dependendo do 'prestígio' do periódico. Agora considere um sistema em que todos os pesquisadores da instituição precisam publicar vários artigos em periódicos de alto impacto para serem bem avaliados. Que instituição pública conseguiria pagar por isso?

PP: Elimina-se o custo do acesso, mas se introduz a taxa de publicação (ou ‘o custo da visibilidade’). De acordo com o documento “Dez anos da Iniciativa de Budapeste em Acesso Aberto: a abertura como caminho a seguir” (2012), “os custos do AA podem ser suportados sem adicionar mais dinheiro ao atual sistema de comunicação científica”. Efetivamente, como isso aconteceria?

Cristina Guimarães: Sem adicionar mais dinheiro, se houver equilíbrio entre o custo do acesso e ‘o custo da visibilidade’. Suponha uma instituição que gaste R$ 10 milhões/ano para renovar suas assinaturas de periódicos. Se uma parte deles adotar o acesso aberto a seus artigos, a instituição, teoricamente, economizaria uma quantia que poderia ser usada para pagar as taxas de publicação do outro conjunto de periódicos que mantenha restrição de acesso. Se será possível, de fato, alcançar um equilíbrio entre o que se economiza e o valor das taxas, é uma questão ainda em aberto. Mas certamente será necessário que as instituições façam uma avaliação do conjunto de suas assinaturas e do uso desses periódicos, para identificar títulos que potencialmente possam ser excluídos. Do contrário, as instituições terão sempre um custo ‘morto’, de pagar por algo que não usa.

PP: Existem instituições públicas, como a Fiocruz, com políticas de financiar periódicos em acesso aberto sem cobrar taxa de publicação, isto é, periódicos abertos nos dois sentidos. Como elas ‘suportam’ os custos?

Cristina Guimarães: A Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde (RECIIS), do Icict/Fiocruz, por exemplo, é totalmente aberta para acessar e publicar. É claro que existe custo, mas parte dele pode ser e acaba sendo diluída nos papeis institucionais. O periódico conta com o trabalho de um servidor público que assume a editoria científica, utiliza infraestrutura já existente na instituição... Às vezes, é difícil de quantificar este custo, porque está diluído. De qualquer modo, é um custo que se justifica por um compromisso ético da instituição: se as pesquisas são financiadas com recursos públicos, é responsabilidade institucional retornar para a sociedade o conhecimento produzido. Justifica-se também porque o acesso aberto contribui para alterar a estrutura de poder entre centro e periferia.

PP: Outras questões ainda não estão equacionadas e precisam ser mais discutidas em relação ao acesso aberto?

Cristina Guimarães: Todo esse movimento, daqui a pouco, encontrará seu ponto de conforto e a infraestrutura de comunicação da ciência deve se rearranjar, com algumas diferenciações em suas regras. A abertura que o setor editorial privado tem adotado ainda é lenta, e está longe ainda de abraçar, por exemplo, títulos de maior tradição. Há periódicos que surgem no modelo da abertura, outros ainda nascem restritos, e muitos periódicos antigos resistem, especialmente porque a equação financeira não está resolvida. Mas colocar os artigos em acesso aberto é uma orientação que, cedo ou tarde, será o modelo predominante. Confesso que tenho dificuldades de manter uma aposta na restrição do acesso num mundo cada vez mais tecnológico. A tecnologia não deixa alternativa: não tem acesso à informação quem não dominar, minimamente, os caminhos que a web oferece. Não é difícil encontrar disponíveis cópias de artigos (alguns até traduzidos) e mesmo livros inteiros de grandes casas editoriais. Há casos de documentos abertos para leitura, restritos apenas para impressão. Com a ação dos hackers, nenhuma restrição de acesso é 100% eficaz. Especialmente fora do Brasil, já existe há muito tempo outro importante movimento, em que os próprios pesquisadores tomam a iniciativa de colocar suas publicações na web em suas páginas privadas.

PP: A fronteira entre comunicação formal e comunicação informal da ciência estaria se diluindo?

Cristina Guimarães: Elas não se confundem, são dois mundos. A comunicação formal cumpre um papel fundamental que é o de preservar a memória da ciência (além, claro, do estabelecimento da prioridade e da atribuição da autoria). Como instituição, a ciência só sobrevive se mantiver sua memória. Todas as nossas normas estruturantes, como a avaliação por pares, estão inscritas na comunicação formal. Não é memória, e se perde aquilo que não tem a chancela da comunidade, que não foi avaliado, testado, escrutinado pelos pares. Isso não significa que a comunicação informal não tenha seu valor e impacto, pois é central para acelerar a circulação de ideias e a capacidade de inovação. Ambientes virtuais, como fóruns, blogs, redes sociais etc. cumprem um papel maravilhoso de reformatar e ampliar os espaços informais. Há 20 anos, participar de um espaço informal significava ir a congressos. Hoje, não preciso sair do lugar para encontrar meus pares. Os ambientes virtuais fazem fervilhar novas ideias, além de fomentar contatos interdisciplinares. A história da ciência, daqui a 20 ou 30 anos, vai olhar para o fim do século 20 e começo do 21, provavelmente, como um divisor de águas de um novo modelo de produção do conhecimento.

PP: Nesse novo modelo de produção do conhecimento, é necessário rever critérios de avaliação?

Cristina Guimarães: Sem dúvida. Se não começarmos a fazer isso logo, perderemos a pujança de um movimento que, muito provavelmente, pode ser uma força reestruturadora ou fomentadora da ciência nacional. O modelo dominante de avaliação ainda opera no sentido de qualificar o conhecimento produzido numa perspectiva mais internacional do que nacional. Ou seja, esses critérios orientam uma prática de publicação que privilegia periódicos internacionais, em sua maioria, de acesso restrito. Ou, esse modelo de avaliação ainda não favorece um modelo de abertura de acesso. Cada vez mais se fala em ciência aberta. Precisamos falar mais e mais sobre abertura no acesso à informação.

PP: Sistemas de avaliação diferentes para pesquisadores com necessidades diferentes?

Cristina Guimarães: Eu diria que são sistemas complementares. Precisamos ampliar os critérios de avaliação. O cientista que está fazendo pesquisa de ponta no Brasil, por exemplo, na área de genômica, tem que ser estimulado a publicar em revistas internacionais de alto impacto. Para ele, o critério está dado. Mas como avaliar o pesquisador que produz ciência com uma vinculação mais local? É fundamental incorporar dimensões capazes de avaliar a ligação do conhecimento produzido com a demanda social. Só que isso é difícil porque estamos muito habituados com os critérios clássicos de avaliação. Ampliar esses critérios realmente constitui um grande desafio.

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