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Em agosto de 2018, um aluno de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS)/Icict/Fiocruz defendia uma tese considerada por alguns como “diferente”. Orientado por Inesita Soares de Araújo (PPGICS) e co-orientado por Maria Natália Pereira Ramos, da Universidade Aberta – Uab Lisboa, de Portugal, Aluízio de Azevedo Silva Júnior – ele mesmo um cigano da etnia Kalon – “mapeou e analisou os processos interculturais de comunicação (produção, circulação e apropriação) das políticas públicas de saúde para ciganos no Brasil e em Portugal".
Intitulada “A Produção Social dos Sentidos nos Processos Interculturais de Comunicação e Saúde: a apropriação das Políticas Públicas de Saúde para ciganos no Brasil e em Portugal”, a tese de Azevedo faz um extenso levantamento histórico da vida cigana e também – sob a ótica da saúde – tenta mostrar qual o impacto das políticas públicas para esses povos.
A origem dos povos ciganos é imprecisa. Alguns atribuem a sua origem à Índia, outros ao Egito. A maior dificuldade é devido não se ter “a história escrita, apenas a oral”, como explica Azevedo, que ainda chama a atenção para a quantidade de lendas, mitos, fantasias e construções do senso comum que cercam os povos ciganos no imaginário popular – “isto mantém e reforça preconceitos e estigmas, discriminação, desigualdades e exclusões”, afirma Azevedo. Mesmo assim, é possível identificar grupos de ciganos antes do século X, na Turquia, nos países balcânicos (Albânia, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, Grécia, República da Macedônica, Montenegro, Sérvia, Kosovo, além da porção turca no continente europeu), e na Croácia, Romênia, Eslovênia e a Áustria. Na Europa Ocidental, a presença inicial dos povos ciganos é reconhecida na Alemanha, em 1417. Ainda no século XV, eles são encontrados na França, Grécia, Espanha e Portugal, dentre outros países.
O aluno do PPGICS chama a atenção em sua tese que, durante séculos, por todos os países por onde passaram, os povos ciganos deveriam seguir leis e regulamentos específicos, que no fundo “buscavam erradicá-los ou obrigá-los a se integrarem na sociedade através da sedentarização, além de criminalizá-los”.
Ainda no século XV, Portugal passa a ser o primeiro país do mundo a lançar uma política agressiva contra os ‘romani’, como eram chamados os povos ciganos à época, com o banimento ou degredo para as terras do Novo Mundo – países africanos e o Brasil. Azevedo cita em sua tese que – pela legislação portuguesa vigente, “a colônia americana foi legitimada como destino para os ciganos degredados já no ano de 1549, por meio de um decreto de Dom João III”.
Segundo dados levantados por Azevedo, por quase 300 anos – graças a ligação histórica entre Portugal e o Brasil – povos da etnia cigana Kalon foram os que desembarcaram e viveram no país. Aluízio de Azevedo explica que “desta forma, entre as normativas e punições aplicadas aos ciganos no Brasil ao longo do período colonial, durante o época imperial e até durante a República (até os anos 1940), constavam: a proibição de ser cigano, que incluía falar a língua própria, usar seus trajes, viajar em bandos, praticar a leitura de sorte ou ‘feitiçarias’, praticar a ‘vagabundagem’ ou a mendicância; a sedentarização com a ocupação de trabalhos fixos, e a separação de famílias, com a entrega de filhos para que soldados os "educassem"; e assassinatos – embora em menor escala – no Brasil também aconteceram, com o apoio da população, caçadas aos grupos e acampamentos”. Além disso, afirma Azevedo, “qualquer cidadão tinha direito a prender ciganos e entregá-los na cadeia mais próxima, podendo a pessoa tomar-lhes todos os bens, ouro, roupas ou cavalos".
Segundo estimativas do IBGE e, conforme explica Aluízio de Azevedo Silva Júnior em sua tese, e de estudiosos ligados ao tema, existem no Brasil (dados de 2013) cerca de 500 mil pessoas ciganas, divididas por três grandes etnias. Temos os Kalon (a maioria no país), os Rom e os Sinti, que ainda se subdividem em diversos grupos e subgrupos. “Ser cigano é pertencer a uma etnia cigana e não a uma religião”, esclarece Azevedo. “Aliás, os grupos ciganos não têm uma religião de origem e, normalmente, adotam a religião dos lugares onde estão. No Brasil a maioria é católica, mas hoje há um forte movimento de conversão às igrejas evangélicas”, afirma.
Em 2014, o IBGE divulgou o ‘Perfil dos Estados e dos Municípios Brasileiros 2014’, que reunia os resultados da Pesquisa de Informações Básicas Estaduais – ESTADIC e da Pesquisa de Informações Básicas Municipais – MUNIC realizadas nos 27 estados e nas 5.570 municipalidades brasileiras, respectivamente.
A grande dificuldade de se ter uma ideia real da quantidade de ciganos vivendo no país é que nem todos são nômades. Assim, o governo federal reconhecia – por intermédio da então Secretaria de Igualdade Racial (Seppir) – que “os dados oficiais sobre os povos ciganos ainda são muito incipientes", conforme está descrito no documento “Brasil Cigano – Guia de Políticas Públicas para Povos Ciganos” (2013). O próprio IBGE em 2011, quando realizou a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC), identificou 291 municípios, distribuídos em 21 estados, que abrigavam acampamentos ciganos; sendo Minas Gerais a que mais possuía esses acampamentos (58), seguida da Bahia (53) e Goiás (38).
Pegando apenas as dois maiores estados do país – São Paulo e Rio de Janeiro, pode se ter uma ideia de como estão espalhados os povos ciganos no Brasil. Dos 92 municípios do Rio de Janeiro, 16 possuem acampamentos de ciganos. Desses, apenas Carapebus tem local específico para este fim. Já o estado de São Paulo, somente 33 cidades, das 645 existentes no estado, possuem acampamentos, sendo que oito destinam uma área específica para o acampamento de ciganos.
Para Azevedo, mesmo esses dados governamentais seriam “falhos, porque os acampamentos, normalmente, correspondem aos ciganos que ainda são nômades e por isso mesmo migram. Por exemplo, em dezembro de 2017, haviam dois acampamentos ciganos na cidade de Rondonópolis (Mato Grosso) que não estavam contabilizados. Além do que, hoje, aproximadamente 80% dos ciganos fixaram residência e as informações da MUNIC não dizem nada a respeito dos ciganos que não são mais nômades”, explica.
Uma das principais demandas apresentadas pelos povos ciganos é a Saúde. O Sistema Único de Saúde – SUS garante o atendimento a todos os cidadãos e os povos ciganos contam com um “Cartão para Cidadão em Situação Especial”, que contempla além de ciganos, estrangeiros, índigenas, apenados (presos cumprindo pena em regime fechado ou semi-aberto) e a população fronteiriça do país, conforme a Portaria 940, de 04/09/2012, do Ministério da Saúde. Contudo, com características sócio-culturais próprias, este atendimento acaba sendo prejudicado, como afirma Azevedo: “muitos grupos, devido as suas especificidades culturais, não aceitam que as pessoas sejam atendidas por outras de sexo diferente. Por exemplo, se uma mulher cigana vai procurar os serviços de saúde, dificilmente continuará o tratamento se for atendida por um médico. O mesmo vale para os homens ciganos, que não gostam de ser atendidos por mulheres médicas”.
O aluno do PPGICS também chama a atenção sobre como os grupos ciganos têm um outro olhar para a saúde. “Eles vêem a saúde de forma diferente dos profissionais da área e da população em geral. Quando um cigano fica doente, muitas vezes, o grupo todo acaba indo para o hospital e aí se encontram muitos conflitos, principalmente, pelos horários e limites de visitas aos pacientes.”
Em entrevista ao site do Icict, Aluízio de Azevedo Silva Júnior fala um pouco mais sobre a sua tese, o racismo que envolve os povos ciganos e o impacto disto na saúde destes povos.
O aluno do PPGICS complementou por texto algumas perguntas:
Em sua pesquisa, foi constatado algum tipo de discriminação em relação às comunidades ciganas? Como isto se reflete na saúde do povo cigano?
Todas as pessoas que entrevistei, e foram 20 no Brasil e 20 em Portugal, relataram haver racismo institucional na saúde. Em Portugal, há relatos de que houve esterilizações forçadas de mulheres ciganas e também maus tratos por parte de alguns profissionais. No Brasil, houve conflitos entre a equipe de saúde cigana do Ministério da Saúde e parte do movimento cigano brasileiro em um cartaz editado pelo órgão para divulgar a portaria 940(que dispensa ciganos de apresentarem documentos de comprovante de residência e identificação para serem atendidos nos serviços do SUS), que acabou indo parar no Ministério Público Federal (MPF), porque a foto da peça publicitária estava ilustrada apenas por uma família da etnia Rom. Os ciganos da etnia Kalon não se sentiram representados e questionaram o cartaz, que teve uma tiragem de cinco mil exemplares e foi dirigido a profissionais de saúde. Acredito que há questões históricas que reforçam o racismo, como os estereótipos e estigmas que foram criados e difundidos, inclusive com o apoio da mídia, da ciência e da literatura, acerca dos ciganos e que precisam cessar.
Estas questões afetam de diversas maneiras na saúde, uma vez que pode causar desconfiança dos profissionais e dos serviços, além de conflitos e ausência de prosseguimentos de tratamentos que exijam acompanhamento prolongado, por exemplo.
Quais as principais doenças que afetam à população cigana do país? Há dados sobre isso?
Os dados oficiais acerca das comunidades ciganas são muito escassos. O IBGE não faz a contagem dos povos ciganos no Brasil. Estima-se que somos entre 500 mil e um milhão de pessoas. Os sistemas de saúde também não têm informações específicas sobre tais populações. A pesquisa científica também ainda é muito incipiente sobre o tema, especialmente na área da saúde. No Brasil, temos algumas questões que aparecem com maior preocupação, como por exemplo, a saúde sexual e reprodutiva, principalmente, no cuidado da saúde das mulheres. De um modo em geral, as comunidades ciganas são bastante afetadas também pelas doenças crônico-degenerativas, como diabetes, hipertensão arterial, colesterol, enfim. Em Portugal, há fortes problemas relacionados as questões respiratórias. Também no país, estima-se que a população cigana viva em média entre 15 a 18 anos menos que os compatriotas portugueses. A verdade, é que boa parcela das comunidades ciganas encontra-se em situações de exclusão e desigualdade social, em locais insalubres, sem acesso a saneamento básico, ou serviços de saúde, transporte e educação, o que acaba reverberando em várias doenças relacionadas à pobreza.
Há "especificidades no atendimento à população cigana". Quais e por quê?
Há várias especificidades. As pessoas ciganas têm uma visão diferente do processo de saúde-doença, vida-morte. No Brasil, algumas comunidades colocam como uma das principais questões a demanda para que sejam atendidos por médicos e profissionais de saúde que sejam preferencialmente do mesmo sexo do(a) paciente cigano(a). Há questões culturais e tabus referentes ao corpo que precisam ser respeitados. Além disso, quando uma pessoa cigana adoece, a comunidade, que normalmente é grande, sente a enfermidade com bastante intensidade. E, na maioria dos casos, muitos familiares comparecem aos serviços e podem causar conflitos com profissionais que não estão habituados ao excesso de visitas. Mas essas questões também precisam ser conhecidas pelos profissionais de saúde que devem estar preparados para atuarem adequadamente, respeitando o princípio da equidade.
Vídeo “O que se ouve. O que se diz. O que se faz”:
Texto: Tese “A Produção Social dos Sentidos nos Processos Interculturais de Comunicação e Saúde: a apropriação das Políticas Públicas de Saúde para ciganos no Brasil e em Portugal” – Aluízio de Azevedo Silva Júnior | Edição: Graça Portela (Ascom/Icict/Fiocruz)
Vídeo Aluízio de Azevedo Silva Júnior – Entrevistas
Gravação: Aluízio de Azevedo Silva Júnior | Edição: Graça Portela (Ascom/Icict/Fiocruz)
*Trecho da música “O que se cala” – Elza Soares
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Comentários
Verena Maria
qua, 25/12/2019 - 20:20
Muito interessante essa
Muito interessante essa pesquisa! Queria que todos tivessem acesso a essa informação!
Lucia bastos
ter, 22/01/2019 - 14:24
elogio
Achei muito interessante a reportagem pois desconhecia completamente o assunto
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