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"O extenso catálogo da Fioflix carrega histórias ricas, não só em conteúdo, como em formato. Os filmes disponibilizados utilizam elementos estéticos e audiovisuais para passar uma mensagem, o que não é diferente na obra Meia Lua Falciforme. Mas, diferente de outras obras disponíveis na plataforma, o filme Meia Lua Falciforme é rico em sua simplicidade. Trata-se de um filme artístico, não como a exuberância de monumentos e pinturas, mas sim como a sutileza e sensibilidade da poesia. O filme aborda a doença falciforme em relatos potentes e crus, explorando como a dor - não apenas física - afeta a vida dos pacientes e familiares. Sendo genética e hereditária, a doença acomete, principalmente, populações pretas e pardas sendo, por esse motivo, muito negligenciada. Pautado nesse contexto, o filme nos propõe uma análise: o que torna a vida dos pacientes da doença falciforme excepcionalmente difícil é a dor física ou o racismo institucional que a acomete?"
Logo em seu princípio, o filme demonstra que não precisa de muito para criar uma atmosfera de seriedade. Até mesmo o silêncio nos parece realista. Em seus créditos iniciais, um ruído branco preenche o fundo preto assim como preencheria um teatro vazio. Como se os holofotes finalmente se ligassem, uma moça aparece no centro da tela. Com uma roupa em tons terrosos, um cabelo black power imponente e uma maquiagem sutil, ela começa a recitar a poesia sobre o tema que paira durante todos os 22 minutos de exibição: a dor.
No rosto o sorriso estampado
alegria presente quando a dor sufoca a gente
Dor como companheira primeira dos dias
em que se preferiria o descanso
Mas me levanto
Sigo em frente
O trabalho não conhece a dor da gente
Difícil falar sobre a dor com quem dela não entende
Depois disso, a tela retorna ao vazio do preto que rapidamente dá lugar ao título: Meia Lua Falciforme. A palavra “falciforme” pintada de vermelho, como o sangue em meia lua que corre nas veias dos protagonistas dessa história. A trilha sonora, praticamente inexistente, consiste em duas notas que existem apenas para enquadrar o título. Sucintas, elas abrem espaço para que um pequeno texto nos explique do que se trata a doença: uma alteração genética nas células do sangue que faz com que os glóbulos vermelhos não sejam arredondados, mas sim em formato de meia lua. Os dizeres somem da tela, mas dessa vez não somos deixados com o vazio. O termo “meia lua” permanece. Solitário, ele ganha uma companheira em seu lado esquerdo: uma cinzenta lua minguante. Uma terceira e solitária nota musical apaga o termo “meia lua” e, ao se banhar em um vermelho intenso, a lua acompanha uma nova palavra em seu lado direito: Doença. É assim que se começa o primeiro dos quatro blocos desse filme.
Finalmente, começam-se os relatos que compõem o corpo dessa obra. Em um fundo preto repleto de estrelas azuis - algumas vermelhas - além de uma meia lua vermelha no canto direito, as palavras mostram-se suficientes para tocar o espectador. A trilha sonora que, em outros projetos, seria um artifício para sensibilizar, aqui não é necessária.
“Você tem que ficar equilibrando a questão de não criar uma vítima, não dar estrutura para essa pessoa se manter no universo sozinha e ao mesmo tempo você também não pode querer que seja igual às outras pessoas porque tem as especificidades". A enfermeira e mãe de paciente com doença falciforme Simone Peres compartilha uma faceta da dor de criar um filho com a doença. Além dela, outros três pacientes falam das suas experiências, além de uma médica especialista no assunto. “Você tem que dar graças a Deus porque antigamente os médicos falavam que você ia viver até os 17, 18 anos. Hoje em dia você está com 28 com planos e sonhos, correndo atrás”. Nesse primeiro momento, entende-se a eternidade da questão que é uma doença sem cura.
Após esse bloco, voltamos à vermelha lua minguante que some em um eclipse. Em um vazio, tanto visual quanto sonoro, a palavra “dor” abre o segundo bloco do filme. Aqui, não se fala apenas da dor corporal, mas também toda a dor emocional que a negligência no tratamento da doença traz consigo. “Tem uma escala analógica para dor. Zero, nenhuma dor. Dez a pior dor. Muitas vezes, a nossa dor não é dez. É mil”, diz a paciente Maria Vilela, com a voz embargada.
A médica Joyce Aragão fala sobre como o paciente vive com dor o tempo todo e sobre como, na maioria das vezes, a dor é tão forte que é necessário o uso de morfina. Aí somos contemplados com a primeira violência médica: assumir que o paciente, ao invés de estar acometido de uma insuportável dor, na verdade está fingindo pois é usuário de morfina. “Ela falava comigo, olhava, mas não estava escutando o que eu estava falando”. É bastante explicitada a negligência e o preconceito que vêm da própria equipe médica. O não conhecimento dos sintomas e especificidades da doença faz com que a população leiga também assuma um comportamento violento contra os pacientes da doença falciforme. Um exemplo impactante citado no filme é o priapismo, uma ereção involuntária e persistente que causa intensa dor. “Tem um cara que foi espancado, levado para delegacia porque acharam que ele, naquela situação estava abusando de alguém e ele não conseguia dar conta”.
O vazio do eclipse dá lugar a uma vermelha lua crescente, acompanhada do título do terceiro bloco: racismo. “A doença falciforme vivia uma completa clandestinidade porque ela não existia no SUS até 2005”. É neste bloco que o racismo institucional é explorado. Por mais que pessoas brancas também possam ser diagnosticadas com a doença falciforme justamente pela miscigenação genética do Brasil, pelo fato da grande maioria dos diagnósticos serem de pessoas pretas e pardas, ela não é tão seriamente debatida. “Se ela fosse uma doença de branco teria avançado mais”.
A paciente Maria Vilela dá um dos mais poderosos relatos de todo o filme. Ela fala sobre o falecimento de seu irmão, também paciente da doença, decorrente de uma enorme negligência e pré-concepções por parte dos médicos. Ao ser levado à emergência com uma dor imensurável, o irmão de Maria não recebeu a medicação necessária, pois a equipe médica assumiu, de forma bastante debochada, que ele só estava ali por ser usuário da medicação. Ele não resistiu às complicações e veio a falecer.
Agora, diferente das outras luas, somos contemplados com uma lua cheia e viva. Diferente da convencional lua cinza, ela permanece vermelha e acompanha a palavra “viver”. A solitária nota musical toca mais uma vez, abrindo o último bloco do filme, no qual fala-se sobre, mais do que a doença, sobre a vida. “Eu sempre falo que eu não sei quanto tempo eu vou conviver com ele, se mais dez anos, mais 20, mais 30, não faço ideia. Mas, enquanto for, vai ser por amor e com amor e com luta porque não tem outra alternativa, é esse o caminho”. Em relatos de tratamentos eficazes e melhoras na qualidade de vida, os relatos tomam um tom de esperança e da alegria que é possível sentir mesmo em situações de dificuldade. Maria Vilela mostra seus quadros e um em particular chama atenção. Trata-se do quadro que retrata seu falecido irmão. “Depois eu fui ver que tem muito o meu irmão nela [na tela], tem muito do José Geraldo Rosa Vilela aqui nessa criança irritada, nessa criança que está chorando. Tem dor aqui. Tem uma dor real. A Resistência resiste, ela luta. A gente sabe da luta do povo negro desde o início, desde o primórdio”.
Ao invés de um fundo preto, a tela recebe a mesma moça que recitou uma poesia no começo da obra. Com um enquadramento focado em seu rosto e em seus traços, ela termina de clamar a poesia que fala da dor, mas uma dor que faz parte de quem se é e não apenas algo que se sofre.
Mais fácil sentir
fazer-se forte
como se a dor estivesse ausente
Essa companheira dos dias
já não retira de mim a alegria
nem essa magia de existir
Quando ela aparece
só me resta sentir
Carregar no corpo o peso que a alma leve já não carrega
Viver a vida em entrega
Mesmo custando tanto
Quem vai querer saber do meu pranto?
Das dores que na vida carrego?
Sigo firme
forte
lutando
À dor
já não me entrego
A tela preta retorna com dizeres sobre a doença falciforme ser a doença hereditária mais comum no Brasil. O silêncio em ruídos foi substituído por sons de hospital. O som de um pulsar de um coração soa, em tons mecânicos de uma máquina hospitalar. Por mais que a doença exista, o coração segue batendo e bombeando o sangue vermelho e intenso pelo corpo, mesmo que escasso, mesmo que frágil, mesmo que em meia lua. Para assistir Meia Lua Falciforme e outros 400 filmes sobre saúde, ciência e tecnologia, acesse a plataforma Fioflix: Vídeo Saúde.
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