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A psicóloga Mariana Bteshe fala da dor dos sobreviventes de um suicídio, do impacto que essas mortes violentas causam em cada um das pessoas próximas e da pesquisa que resultou em sua tese de doutorado - “Experiência, narrativas e dispositivos infocomunicacionais: sobre o cuidado no comportamento suicida” – defendida em 2013, para o Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS)/Icict.
Vale sempre lembrar que o suicídio é um fenômeno complexo e multifacetado. Logo, por um lado, não temos como afirmar que todo suicídio ou tentativa de suicídio é um pedido de ajuda ou uma forma de comunicação. Ainda não há consenso no campo da Suicidologia sobre o tema. Por exemplo, se matar pode ser um ato de desistência frente à sensação de estar sem saída, ou de desespero diante de uma dor insuportável, ou ainda, pode ser um ato de impulsividade. Por outro lado, os bilhetes, cartas ou posts suicidas em redes digitais podem ser compreendidos como formas de comunicação, pois nos dão indícios de motivações e dos diferentes significados atribuídos a tal ato. Trata-se, portanto, de uma discussão sobre intencionalidade, que ainda é um ponto nodal para construção de um cuidado integral da crise suicida. Os estudos que se dedicam a análise temática de bilhetes de suicidas destacam, por exemplo, que certos conteúdos são recorrentes e que poderiam indicar um caminho para as intervenções de cuidado.
Para os sobreviventes da rede social de apoio (amigos, família, colegas de trabalho), os bilhetes podem ter uma função essencial na posvenção, pois deixam pistas mais concretas que possibilitam às pessoas reconstrir suas histórias diante de uma perda tão perturbadora, que por vezes beira o aterrorizante. O suicídio de alguém próximo tende a ser vivido como traumático, ou seja, ser literalmente sentido como uma experiência paralisante, que causa uma sensação de desrealização e cria buracos na história de vida dos sobreviventes. Neste sentido, os bilhetes possibilitam que os sobreviventes tenham elementos para construir uma versão que explique racionalmente como aquilo que aconteceu. Talvez por isso a necessidade de guardá-lo para si. Trata-se da possibilidade de uma construção de novas versões da história para si e para os outros.
Não temos como afirmar que as pessoas que deixaram os bilhetes ou cartas suicidas querem ou não ser lembradas. São inúmeras as intenções dos bilhetes, encontramos desde despedidas, passando por recomendações e orientações práticas, até cartas que objetivam culpabilizar ou responsabilizar os sobreviventes. A questão que nos interessa é os efeitos destes bilhetes sobre os sobreviventes ou o uso que podemos fazer destes relatos para a construção de uma nova narrativa.
Cabe uma explicação anterior. O interesse pela dinâmica das “redes sociais primárias” ou de proximidade, na experiência vivida diante do fenômeno do suicídio e de suas diferentes manifestações emergiu do próprio processo da observação participante durante o trabalho de campo na pesquisa “Abordando a epidemiologia do risco de suicídio na AP1 e AP3, através de um serviço de emergência psiquiátrica”, que foi realizada no Rio de Janeiro (RJ) entre 2007 e 2009. Algumas questões me chamaram a atenção: Por que nos grupos focais, grande parte das pessoas apontou para vizinhos e colegas de trabalho, relações mais casuais, como referências na busca por ajuda? Por que a insistência em falarmos sobre estigma com as famílias, ao invés do público leigo em geral ou mesmo para eles? Encontrei no doutorado uma oportunidade de investigar sobre o silenciamento desta questão nos diálogos entre familiares e pessoas próximas, que supostamente seriam a rede de apoio principal. Não por acaso o interesse maior na área da saúde está voltado para a rede social primária, ou seja, por aquela relativa às interações cotidianas entre as pessoas.
Através da análise da pesquisa maior e da pesquisa da tese, podemos destacar que a desinformação, o preconceito e o julgamento moral, que geralmente aparecem junto ao comportamento suicida, interferem na dinâmica da família e na rede social próxima. Evita-se falar do assunto mesmo entre os membros mais íntimos. Muitas vezes sinais verbais ou comportamentais da intenção suicida são dados, mas as pessoas da rede social não conseguem perceber como um sinal de risco. Ou não percebem ou se paralisam. Por ter uma conotação negativa, a família pode se sentir culpada por não saber o que fazer com o risco de suicídio ou por não ter conseguido evitar o ocorrido. Esta culpa desencadeia um sentimento de perseguição, que pode levar ao medo de ser julgado como responsável direto pelo gesto, ou ainda, a um recolhimento por serem constantemente vitimizados socialmente. Estas são estratégias para se defender do estigma, o que muitas vezes leva a um silenciamento da questão e na busca de informações.
Os estudos sobre self-disclosure, ou seja, a atitude de verbalizar ideias, planos e pensamentos suicidas com outros, apontam que existe uma maior facilidade em falar sobre isso com amigos, colegas ou pessoas importantes do círculo social do que com familiares ou profissionais de saúde. Se estes, como leigos, não sabem como agir, ou que fazer diante de uma ameaça de suicídio, podem carregar uma angústia e um fardo muito grande. É necessário desmitificar que o falar sobre suicídio leva a pessoa a cometer este ato. Ao contrário, o fato de poder verbalizar estes pensamentos, sem ser julgado, faz com que a pessoa se sinta acolhida, compreendida e que possa inclusive ser encorajada a procurar ajuda. Neste contexto, é também essencial conscientizar os profissionais de saúde sobre a importância de perguntar claramente sobre a presença de ideias, pensamentos ou planos de morrer para que uma boa avaliação possa ser feita.
Em suma, as pessoas não procuram informações porque o suicídio ainda é um tema tabu, que pelos motivos supracitados levam a um silenciamento. Não é por acaso que para a OMS, falar e divulgar abertamente os dados sobre suicídio não é somente visto como uma ação de intervenção em saúde, mas é recomendado como estratégia prioritária de cuidado. Nesse sentido, o papel das estratégias infocomunicacionais é central nos casos de familiares, ou pessoas com ideações suicidas, ou com histórico de tentativas de suicídio.
Vale lembrar que este ano, no mês de setembro, escolhido pela OMS para ser o mês de conscientização sobre a prevenção do suicídio, o tema da campanha foi “Conectar, comunicar, cuidar” e teve uma ótima circulação nas redes digitais. Foi o primeiro ano no Brasil, que observei uma maior mobilização social e cultural. Pude ver grupos e instituições, que não são associadas diretamente com a saúde ou com a temática do suicídio a priori, participarem da campanha ativamente. Li postagens do Colégio Pedro II, de associações de bairros, do TJF, entre outros. Isso significa que a sociedade civil, pela primeira vez, também aderiu à campanha de conscientização, o que implica numa maior participação não só em termos de criação de políticas públicas de cuidado, mas também na manutenção de um espaço de fala, que chame a atenção da comunidade para a importância de redefinir suas concepções sobre o suicídio, libertando-o do ideário de que este assunto não deve ser falado publicamente. Esta foi uma primeira e importante vitória. Mas, vale lembrar que a socialização dos conhecimentos sobre o suicídio só pode ser feita de forma democrática, participativa e dialética. Para isso, é essencial levar em conta os significados dados pelo indivíduo ao lidar com este tipo de sofrimento, bem como a construção social criada em torno dele. É igualmente importante implicar a comunidade e considerar suas características socioculturais próprias.
No Brasil, temos poucos estudos que abordam o suicídio ou as representações sociais dadas a elas a partir do relato de sobreviventes. O modo como os indivíduos narram certas experiências de sentir-se mal, comunicam e negociam significados, pode colocar em perspectiva algumas dimensões de uma experiência compartilhada pouco conhecida. O suicídio é sempre uma morte violenta e chocante, mesmo quando anunciado. E por também ser um tabu social – o ato de se matar não é uma maneira socialmente aceita de morrer – torna o processo de luto ainda mais complicado.
Em Suicidologia, nos últimos anos, é utilizado o termo "sobrevivente de um suicídio" para se referir aquele que está enlutado por um suicídio. Principalmente, para falar das pessoas que de alguma maneira foram atingidas diretamente por esta experiência, ou seja, que foram obrigados de maneira fortuita a passar por algum tipo de mudança drástica e de reorganização em suas vidas.
Usualmente, os membros da família nuclear (pais e irmãos) são os mais diretamente atingidos. Isto é um fato. Entretanto, esta noção de sobrevivente abarca também pessoas que têm sua vida diretamente modificada de maneira negativa por este gesto. Um condutor do metrô que atropela uma pessoa que se jogou nos trilhos, pode ser tão atingido por esta experiência como alguém da família. Um profissional de saúde que acompanhou o caso e não conseguiu evitar o suicídio também pode ser um sobrevivente. Por outro lado, alguns familiares se dizem claramente aliviados diante do suicídio de um parente que os ameaçou por anos e simplesmente aceitam esta perda. Ter um parentesco não implica em ter um laço afetivo de qualidade.
Segundo Botega (2015), pesquisas recentes destacam que para cada suicídio, estima-se que entre 5 a 10 pessoas tenham sua vida profundamente afetada. Às vezes, não é tão claro identificar outros sobreviventes aquele ato: pode ser, por exemplo, um colega da escola de um adolescente que se matou e que seu sofrimento poderá passar despercebido, pois ele não faz parte da rede social imediata. Em minha pesquisa de doutorado, pude observar que o silêncio e o isolamento costumam ser as respostas mais comuns entre sobreviventes. São citados ainda sentimentos de vergonha, vazio, raiva, confusão e rejeição. Como sintomas psíquicos foram citados insônia, tristeza, depressão, falta de fome, irritabilidade e dificuldade de retornar ao convívio social.
Cabe lembrar também que pessoas que presenciam tentativas de suicídio, mesmo que estas sejam mal sucedidas ou que socorreram parentes ou amigos, relatam experiências tão traumáticas quanto à morte consumada. Conviver em um ambiente em que o risco iminente é uma constante, pode ser uma vivência traumática. Em um treinamento para a prevenção do suicídio com seguranças de uma universidade, que apesar de serem contratados para proteger o patrimônio, eram as pessoas que diretamente socorriam e muitas vezes impediam as tentativas de suicídio que aconteciam no campus universitário, podemos claramente ver os efeitos negativos desta experiência. E o que era para ser uma aula em um curso de treinamento, em como agir em uma situação de risco de suicídio, acabou se tornando uma catarse coletiva. Cada um tinha uma história para contar e mesmo aquelas nas quais suas atuações tinham evitado a morte de uma pessoa eram descritas como trágicas e marcantes. E como efeitos negativos foram relatados: uso de álcool após o acontecimento para esquecê-lo, insônia, irritabilidade, sentimento de impotência e incompreensão do fato e pedido de afastamento do trabalho.
Ser expectador do comportamento suicida ou de um suicídio consumado, mais do que provocar a angústia, pode engendrar uma incerteza insuportável, típica de um encontro traumático. Se o que acontece não é minimamente assimilável e não consegue ser elaborado em seus desdobramentos, desaba o que, habitualmente, sustenta as relações: a possibilidade da escritura de uma história. Logo, o movimento de contar e recontar o ocorrido, assim como rever os detalhes de uma cena podem ser tentativas de compreendê-los, ou seja, de colocar em palavras aquele ato inominável, circunscrevendo-o simbolicamente a partir de pistas, sinais e memórias lembrados a posteriori. Por este motivo, é importante que as “testemunhas” tenham conhecimento de que existem espaços públicos e privados para que elas possam fazer esse processo de luto, no seu próprio tempo.
A presença de transtornos mentais e história anterior de tentativa de suicídio são os dois fatores de risco mais importantes para o suicídio. Dentre os transtornos mentais, a depressão, o transtorno de humor e a dependência de álcool e outras substâncias psicoativas estão entre as condições mais associadas ao suicídio. Não se trata de afirmar que todo suicida tenha uma doença mental, nem que todo mundo que tem uma doença mental irá se matar. Mas, é importante compreendermos que determinados transtornos mentais tornam as pessoas mais vulneráveis. Cabe também lembrar que a depressão aparece na prática clínica quase sempre associada a outras condições psíquicas, tais como: impulsividade, uso e abuso de drogas e agressividade. O que aumenta o risco para o suicídio. Na pesquisa realizada em um dos polos de emergência psiquiátrica da cidade do Rio de Janeiro, não escutamos nas entrevistas ou grupos focais que a depressão é uma “doença de rico”, apesar de ser algo dito socialmente. Mas, nesta pesquisa as pessoas deprimidas foram identificadas como pessoas “preguiçosas, vagabundas ou acomodadas”, como se apenas o esforço pessoal fosse capaz de vencer a depressão. Esta é uma crença equivocada bastante difundida e que dificulta a busca por cuidado e tratamento.
Por ser uma doença silenciosa e que causa um isolamento social, a depressão acaba causando um círculo vicioso, que pode ser resumido nos seguintes termos: “eu excluo o outro, o outro me exclui”. De acordo com Beck (1979), os indivíduos deprimidos apresentam uma tríade de cognições negativas sobre o mundo ("o mundo é injusto"), o futuro ("futuro é impossível") e o self ("eu sou inútil"). Assim, tendem a olhar para os acontecimentos cotidianos de forma pessimista. Muitas vezes, as trocas sociais tornam-se insuportáveis, fazendo com que a pessoa se recolha. A desesperança e a baixa tolerância aos estímulos exteriores acabam por reafirmar uma experiência de solidão e incompreensão, o que em última instância desgasta as relações sociais e de trabalho. O estigma vivido na experiência de depressão está em geral "associado à sensação de não aceitação, do medo de ser visto como louco, da sensação de incapacidade ao ser exigido, à sexualidade", isto é, às situações em que as trocas intersubjetivas se encontram em risco.
A depressão é uma doença. É necessário falar abertamente sobre: as características deste quadro, suas diversas apresentações, como fazer uma avaliação clinica cuidadosa, os tratamentos existentes, a associação com outras condições mentais etc. São essenciais as estratégias infocomunicacionais para a população em geral, mas também o treinamento ou atualização em saúde mental para os profissionais de saúde.
Mariana Bteshe é psicóloga e professora adjunta da disciplina de Saúde Mental e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Uerj. Atuou, durante cinco anos, como pesquisadora assistente no Grupo de Pesquisa de Prevenção do Suicídio (PesqueSui) do Laboratório de Informação Científica e Tecnológica em Saúde do Icict (LICTS)/Icict, sob a coordenação do pesquisador e professor Carlos Estellita-Lins. Em 2013, ela defendeu – para o curso de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS)/Icictuz – a tese “Experiência, narrativas e dispositivos infocomunicacionais: sobre o cuidado no comportamento suicida”. É coautora do livro “Trocando seis por meia-dúzia: suicídio como emergência na cidade do Rio de Janeiro” e participou junto com a equipe do grupo de pesquisa PesqueSui da idealização e produção do vídeo “Suicídio no Brasil”, lançado em 2012 em parceria com a Vídeo Saúde Distribuidora da Fiocruz.
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