João Roberto Ripper esteve em Eldorado dos Carajás, em 1996, para fotografar o velório dos 19 trabalhadores sem-terra assassinados pela polícia. Percorreu o interior da Argentina perseguindo os rastros deixados pela Doença de Chagas — manchas de besouros nas paredes, médicos voluntários identificando doentes pelas ruas. Mergulhou nos meandros do trabalho escravo que persiste Brasil afora. Testemunhou índios serem expulsos de suas terras, e populações vazanteiras sofrerem com as águas do Rio São Francisco sendo desviadas para as monoculturas. O que Ripper documenta, porém, é a ternura. Pois, enquanto denuncia violências e desigualdades, seu trabalho também flagra o pulsar do afeto cotidiano.
“A vida e o afeto sempre dão um jeito de persistir. Isso é o que de mais importante aprendi com meu trabalho”, afirmou, durante a Roda de Conversa Fotografia e Direitos Humanos, que ocorreu nesta quinta (16/5), no Instituto de Comunicação e Informação em Saúde da Fiocruz (Icict/Fiocruz).
Foto de João Roberto Ripper (Divulgação)
O beijo entre um homem e uma mulher, trabalhadores rurais. Os corpos enlaçados de uma família quilombola, brincando sobre a cama. Um pequeno indígena prestes a saltar do alto de uma árvore. O olhar cúmplice e terno de um menino, buscando o da sua cuidadora, num hospital para pessoas com leishmaniose. É com imagens assim, que flagram o lirismo em cenários marcados pela pobreza e pelas iniquidades sociais, que Ripper construiu um dos acervos fotográficos mais representativos sobre o Brasil contemporâneo, resultado de quase 50 anos de trabalho. “Normalmente, não se vê o pobre amando. A publicidade mantém em foco a classe média. Mas o afeto está em todos os lugares onde há gente”, destacou, acrescentando que, para flagrar esse afeto, é preciso tempo: “Sempre negocio com meus contratantes para que eu tenha pelo menos o dobro do tempo que sugerem a princípio. É o tempo que estabelece a cumplicidade.”
Além de Ripper, participaram da roda de conversa os fotógrafos que integraram a exposição de fotos sobre os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, organizada pelo Icict no ano passado. “A obra do Ripper tem ligação essencial com a temática dos Direitos Humanos. Trata-se, provavelmente, de um dos trabalhos de documentação mais valiosos para interpretar o Brasil, hoje. Por isso, quisemos trazê-lo para conversar com os fotógrafos que participaram da nossa mostra”, narrou Rodrigo Murtinho, diretor do Icict.
João Roberto Ripper, em foto de Raquel Portugal (Icict/Fiocruz)
Um dos temas em destaque na trajetória do foto documentarista são as chamadas doenças negligenciadas, como a própria Doença de Chagas e as leishmanioses. Assim como o cotidiano de quilombolas, indígenas e das populações na região do semiárido. “Não gosto de usar a expressão ‘seca’ quando me refiro ao semiárido. Muito melhor do que fotografar boi morto é registrar as formas como as pessoas buscam aproveitar a água da chuva, reaproveitar a água que usam, criar estratégias para a vida”, defendeu.
Ripper também apresentou, durante a roda de conversa, seu projeto Bem Querer o Brasil, que busca recuperar e disponibilizar seu acervo digital. Este material será doado para a Fundação Biblioteca Nacional para conservação a longo prazo e será disponibilizado para o público para consulta e pesquisa no site do fotógrafo. Cópias deste acervo também serão enviadas para entidades e instituições para auxiliar em suas lutas e reforçar suas políticas de memória. Para tornar o projeto viável, há uma campanha de financiamento coletivo [3] em curso.
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