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E é tão bonito quando a gente entende
Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá
E é tão bonito quando a gente sente
Que nunca está sozinho por mais que pense estar
É tão bonito quando a gente pisa firme
Nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos
É tão bonito quando a gente vai à vida
Nos caminhos onde bate bem mais forte o coração
Chegamos à última matéria da série “Não há lirismo no suicídio” falando da dor dos parentes, amigos, da dor dos sobreviventes, da lembrança enlutada, mas também da esperança de dias melhores, daí, o destaque para essa música do Gonzaguinha, “Caminhos do coração”.
Marcelo (nome fictício) nunca vai esquecer aquela quinta-feira, 12 de dezembro de 1991. Seu pai acabou com a própria vida. Do alto de seus 14 anos aquilo era, no mínimo, incompreensível – em suas próprias palavras: “lembro que não conseguia entender bem os motivos e o porquê de ter sido abandonado daquela maneira. Passei pelo menos um ano em transe… Tentando me encontrar”.
Gabriela (nome fictício) tem um histórico de depressão na família: seu bisavô se matou, sua avó vivia falando que queria morrer e seu pai sofre de um transtorno de espectro depressivo. Em 1996, a então esposa de seu pai, “uma pessoa alto astral”, decidiu se matar. Foi Gabriela quem recebeu a notícia, dada pelo próprio pai ao telefone. Em choque, teve que “absorver a situação”, até para poder apoiar seu pai. Gabriela tinha 21 anos. Passados dez anos, seu pai ainda mora no mesmo apartamento onde a tragédia ocorreu e ainda mantém pela casa fotos da esposa. Para Gabriela, ele “até hoje esta tentando salvá-la.”
Pesquisas apontam que de cinco a dez pessoas são impactadas quando alguém pratica o autoextermínio – sejam familiares, amigos, colegas de trabalho ou aqueles que assistiram a cena.
Tanto Marcelo, quanto Gabriela são “sobreviventes de um suicídio”. Segundo Mariana Bteshe, psicóloga e professora adjunta da disciplina de Saúde Mental e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), da Uerj, e que atuou como pesquisadora assistente no Grupo de Pesquisa de Prevenção do Suicídio (PesqueSui), do Licts/Icict, os sobreviventes seriam aqueles que estão enlutados por um suicídio e aquelas pessoas que, “de alguma maneira, foram atingidas diretamente por esta experiência, ou seja, que foram obrigadas de maneira fortuita a passar por algum tipo de mudança drástica e de reorganização em suas vidas”, por conta dessa experiência tão traumatizante. Para ela, “o suicídio de alguém próximo tende a ser vivido como traumático, ou seja, ser literalmente sentido como uma experiência paralisante, que causa uma sensação de desrealização e cria buracos na história de vida dos sobreviventes”. Mariana também destaca que a noção de sobreviventes de um suicídio alcança também um condutor do metrô que atropela uma pessoa que se jogou nos trilhos ou um profissional de saúde que acompanhou o caso e não conseguiu evitar a morte de um paciente.
Para dar apoio a essas todas essas pessoas, um grupo de voluntários do Centro de Valorização da Vida (CVV), criou um serviço o Gass – Grupo de Apoio ao Sobrevivente de Suicídio – que visa à troca de experiências e de apoio emocional aos “sobreviventes de si, bem como aos familiares e amigos de quem tentou ou tirou sua própria vida, para que possam conversar sobre suas experiências”, explica Maria das Graças dos Anjos, voluntária do CVV e coordenadora do CVV-Comunidade. Ela relata que são muitos os sentimentos dos sobreviventes: “é muito evidente o sentimento de culpa, ou uma raiva imensa pelo ato, ou uma tristeza profunda, e principalmente, é um sentimento de impotência de não poder reverter esse suicídio”, explica.
Sem buscar apoio, Gabriela diz que “teve que ajudar o pai. Foi difícil, porque no início ele relatava que iria fazer a mesma coisa”. Ela lembra que a madrasta nunca falou em se matar, mas nos últimos tempos, estava diferente. “No aniversário dela eu até mandei um cartão com os dizeres – “No cofre da mente estão todas as correntes e as chaves da liberdade estão na nossa mente” (de Paramahansa Yogananda), que eu havia ganhado. Aí, ela me ligou e disse: ‘Seu cartão me ajudou muito, sobre as coisas que estou passando ‘. Minha sensação foi que eu tinha tentado ajudá-la”, afirma. Para Gabriela, a religião foi o que lhe deu suporte, diferentemente de seu pai, um ateu “convicto e raivoso”, como ela diz, “que não consegue aceitar qualquer ajuda”.
Marcelo “não tinha com quem falar” – “às vezes sentia vergonha de me abrir em relação ao assunto... Então, tive que ir resolvendo as minhas questões por conta própria”, fala. Os amigos foram o seu apoio. Ele acredita que teria sido importante “uma ajuda profissional”, mas a mãe e os avós não acreditavam na eficácia de um tratamento psicológico. “Passamos a viver cada um por conta própria, enfrentando os próprios desafios e buscando as respostas para a situação”, afirma.
Em sua tese de doutorado (“Experiência, narrativas e dispositivos infocomunicacionais: sobre o cuidado no comportamento suicida”), defendida em 2013 para o Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS)/Icict, Mariana Bteshe afirma que “o apoio social apareceu nas narrativas como um recurso de cuidado mais importante do que os cuidados médicos em si. O que está em questão é a possibilidade de falar sobre o assunto abertamente, de ser acolhido, de fazer parte de um processo de comunicação”, destacando a importância tanto para quem tenta o suicídio quanto para os sobreviventes a necessidade de compartilhar o que está sentindo ou o que ocorreu. "Na verdade, isso me surpreendeu", afirma, "pois, poucas pessoas tinham acesso ou procuravam os serviços de saude. Mas, os cuidados médicos são essenciais! Um não substitui o outro. Nem é mais importante. São duas formas de cuidado complementares", esclarece. Mariana destaca também que as pessoas que participaram de sua pesquisa relataram “algum impacto negativo ou de mudança em suas vidas, após um suicídio ou terem passado pelo comportamento suicida (...). Uma metáfora que nos parece bastante pertinente é a de um tsunami, que destrói tudo e exige um trabalho intenso de reconstrução e reinvestimento”.
Mariana Bteshe explica que “ser expectador do comportamento suicida ou de um suicídio consumado, mais do que provocar a angústia, pode engendrar uma incerteza insuportável, típica de um encontro traumático. Se o que acontece não é minimamente assimilável e não consegue ser elaborado em seus desdobramentos, desaba o que, habitualmente, sustenta as relações: a possibilidade da escritura de uma história”. Para isso, é necessário que as pessoas procurem espaços públicos e privados para que elas façam “o seu processo de luto”.
“Enquanto o suicídio for um tabu, um assunto invisível para a sociedade, não será possível mobilizar os recursos necessários (humanos, materiais e institucionais) para reduzir as estatísticas”, afirma o jornalista André Trigueiro, um militante da prevenção ao suicídio. Mariana Bteshe concorda com ele: “É necessário desmitificar que o falar sobre suicídio leva a pessoa a cometer este ato. Ao contrário, o fato de poder verbalizar estes pensamentos, sem ser julgado, faz com que a pessoa se sinta acolhida, compreendida e que possa inclusive ser encorajada a procurar ajuda. Neste contexto, é também essencial conscientizar os profissionais de saúde sobre a importância de perguntar claramente sobre a presença de ideias, pensamentos ou planos de morrer para que uma boa avaliação possa ser feita”, alerta.
“I´m still alive” ("Eu ainda estou vivo")– a frase tatuada nas costas de Marcelo é o que faz exorcizar a dor e seguir caminhando. “Essa frase resume o meu sentimento do passado e do presente. O quanto tudo aquilo ainda me influencia, o quanto me sinto de verdade um sobrevivente de tudo o que passei”, explica.
A luta dos que ficam é diária, difícil. É a luta de refazer as suas vidas a partir de um episódio tão traumático. Assim, terminamos essa série com as palavras de um jovem que sofre de depressão, e que aos 34 anos perdeu seu irmão mais velho para o suicídio. Ele enviou uma carta ao CVV e pediu que a divulgassem. Abordaremos oportunamente o suicídio entre indígenas.
“(...)Essa bola de ferro (a depressão) é uma doença. Você já escolheu ficar doente alguma vez?
Eu não. Meu nome é José. Eu tenho depressão. Sou impotente perante o meu problema e faço tratamento. Perdi um irmão para este problema. Na família, já perdi um tio. Outras pessoas. E a partir de hoje não vou mais fingir que ele não existe. Não terei mais vergonha. A partir de hoje visto minha armadura, levanto minha bandeira. Pego minha espada e escudo e lanço-me à guerra. Contra o preconceito, à estigmatização. Contra a falta de apoio, suporte e políticas públicas para pessoas que sofrem com o problema. Sei que outros vão cair, muitos outros ainda vão sofrer, mas que saibam que tem em mim alguém que já passou por isso, perdeu pessoas por conta disso e que quer lutar e estar ao lado para minimizar as dores e sofrimentos que envolvem tudo isso.
E meu irmão: “só enquanto eu respirar, vou me lembrar de você. Só enquanto eu respirar”.
Depressão: você ainda vai levar outras pessoas. Você ainda vai provocar sofrimento, aos que tem a doença, aos seus familiares e amigos. Mas não vai fazer mais isso com vergonha. Não vai mais fazer isso sem batalha, sem luta.
Do luto à luta. Para hoje e sempre.”
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Acesse também o especial "Suicídio", da Agência Fiocruz de Notícias, aqui
Leia a entrevista de Mariana Bteshe, "Sobreviventes: a dor e o cuidado"
Precisando de ajuda, disque 141 – CVV e procure apoio médico nas instituições de saúde.
Créditos da série "Não há lirismo no suicídio":
Infográficos e produção fotográfica: Vera Lucia Fernandes de Pinho (Ascom/Icict/Fiocruz)
Edição de vídeo e fotografias: Graça Portela (Ascom/Icict/Fiocruz)
Apoio: Raíza Tourinho (Ascom/Icict/Fiocruz) e João Paulo Cofir (Secretaria/Biblioteca de Manguinhos/Fiocruz)
Colaboração: Rosany Bochner (Sinitox/Fiocruz) e Núcleo de Informação sobre Saúde e Envelhecimento – Nise/Lis/Icict/Fiocruz
Foto & arte Castelo Mourisco: Peter Ilicciev (CCS/Fiocruz)
Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz)
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