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Um artigo polêmico questionando a eutanásia em cães com leishmaniose visceral foi lançado pelo pesquisador do Icict/Fiocruz, Carlos Saldanha, juntamente com os pesquisadores Érica Gaspar Silva, da Uerj, e Rodrigo Vilani, da UniRio – “O uso de um instrumento de política de saúde pública controverso: a eutanásia de cães contaminados por leishmaniose no Brasil”. Nele, os pesquisadores levantam questionamentos, tomando por base “evidências científicas atuais e análises do ordenamento jurídico brasileiro, realizadas a partir do princípio da precaução e do reconhecimento dos animais como seres sencientes”, que nas palavras de Virginia Williams, presidente da Comitê Consultivo Nacional de Ética Animal (do inglês, National Animal Ethics Advisory Committe), da Nova Zelândia, são aqueles que “podem experimentar emoções positivas e negativas, incluindo dor e angústia”.
Para Carlos Saldanha, duas questões motivaram os pesquisadores a escreverem o artigo: “A primeira, de caráter geral, está relacionada à atuação da Administração Pública de forma fragmentária, imediatista e sem a observação de evidências científicas. Esta medida está longe de se apresentar como solução e demonstra a ausência de uma perspectiva holística das mazelas sociais e urbanas no Brasil. No caso abordado, nossa segunda questão reflete esse modelo de atuação governamental, ou seja, a opção por medidas repressivas, como o extermínio animal, desconsiderando ações preventivas, como o saneamento, o combate ao mosquito transmissor e programas de educação e conscientização ambiental”, explica.
Para se entender a importância do artigo dos pesquisadores, é necessário saber que a leishmaniose visceral canina (LVC) é uma doença infecto contagiosa, causada pelo parasita Leishmania chagasi – os cães são os principais hospedeiros. Segundo a médica veterinária Amanda Dolabella, especialista em clínica médica e cirúrgica de pequenos animais, “o perigo engloba os cães e os humanos. A grande diferença é que os cães se tornam reservatórios naturais, aumentando o risco de transmissão aos seres humanos”. Conforme dados do Serviço de Vigilância Sanitária (SVS), do Ministério da Saúde, em 2014, foram notificados 3.453 casos em todo o país. E nestes casos, o sacrifício de animais é a melhor opção?
O diretor da Academia de Medicina Veterinária no Estado do Rio de Janeiro (AMVERJ), o médico veterinário Deoclécio Bezerra Brito, acredita que não, “porque os vetores reservatórios de uma forma geral ocasionarão a transmissão das leishmanioses ao homem e aos diversos animais”. Ele defende que o ideal é avaliar caso a caso antes de uma medida extrema: “os animais acometidos da leishmaniose deverão ser enviados aos Centros de Zoonoses para as devidas avaliações clínicas-veterinárias”. O mesmo ponto de vista é defendido por Amanda Dolabella: “enquanto não houver uma política pública eficiente e direcionada a eliminação do vetor da leishmaniose visceral, a exterminação do cão portador não resolverá o problema da transmissão. Já se tem comprovação que a eliminação desses cães, que de fato são vítimas da doença, não nos mostram um resultado satisfatório.”
No artigo, os autores inclusive propõem a revisão do Manual de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral, elaborado pela Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, que cita a “eliminação dos reservatórios” como medida de controle da zoonose. Conforme o Manual, no item 4.2, que se refere ao cão, é indicada a terapêutica para o animal doente: “O tratamento de cães não é uma medida recomendada, pois não diminui a importância do cão como reservatório do parasito”. Para Rodrigo Vilani, a norma estipulada no Manual não trata a causa: “Pesquisas recentes, ou seja, não utilizadas pelo Manual do Ministério da Saúde, indicam que não há uma relação entre o sacrifício de cães e a prevalência local de leishmaniose. Isso impõe à Administração Pública atuar preventivamente, realizando um preciso diagnóstico das circunstâncias urbanas locais para a definição de medidas e áreas prioritárias de atuação”, afirma.
Vilani também destaca que o Manual reflete o afastamento da Administração Pública federal das demandas sociais contemporâneas e das evidências científicas mais recentes: “Este Manual, uma publicação oficial da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, na sua versão de 2014 apresenta 66 referências bibliográficas e documentais, das quais 18 são anteriores à Constituição Federal de 1988 e todas foram publicadas há mais de dez anos da publicação desta edição (2014). A ausência de avaliação e revisão das políticas públicas, realizadas com base em dados e informações técnico-científicos robustos, mantém esta, entre outras ações governamentais, no século passado”.
No artigo, os autores afirmam que “com o sacrifício de um animal, muitas vezes está se retirando um cão que seria resistente e colocando no lugar outro com sistema imune sem nenhuma resistência (no caso dos filhotes), em um local com diversos vetores. Assim, o próprio Poder Público está contribuindo para o aumento da prevalência da doença no local.” Eles também defendem que “em vez de alocar recursos na realização de sacrifício animal, parte dessa verba poderia ser utilizada para um programa de política pública preventiva, substituindo a eutanásia por métodos de controle mais eficazes, condizentes com o ordenamento jurídico nacional e os princípios de direito ambiental."
Amanda Dolabella não só concorda, como faz uma análise crítica da situação: “A eutanásia é uma forma mais prática e rápida para o poder público de tentar solucionar a questão, mas antes de se pensar nela, temos que exigir que as mudanças ambientais sejam feitas sobre determinadas regras, como saneamento básico. A profilaxia é a melhor opção, com uso de inseticida, coleiras nos animais em regiões endêmicas e orientação à população para cuidar do seu entorno, evitando focos do mosquito”. A médica veterinária defende um esforço maior por parte dos Ministério da Saúde (MS) e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) em relação ao combate à epidemia de Leishmaniose Visceral Canina.
Um dos argumentos utilizados no artigo “O uso de um instrumento de política de saúde pública controverso: a eutanásia de cães contaminados por leishmaniose no Brasil” é o arcabouço legal que põe em xeque a legislação da Anvisa, citando inclusive uma decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que deliberou “ainda que existente exame positivo para Leishmaniose Visceral Canina, a verificação da real condição do cão, ainda que urgente deve ser apurada antes da determinação da medida extrema de sacrifício do animal” (Minas Gerais, 2013).
O que pode parecer um conflito entre Poderes – Executivo versus Judiciário – se considerarmos o Manual da Vigilância Sanitária, do Ministério da Saúde, na realidade não é, segundo Carlos Saldanha. “Acreditamos que a revisão judicial da medida seja reflexo da postura ultrapassada da política de saúde. O Judiciário, portanto, não apenas incorpora uma perspectiva atual em relação ao tema, mas, sobretudo, lembra à Administração Pública sua obrigação de atuar de forma preventiva e com eficiência. Rodrigo Vilani vai mais além e ressalta que “é preciso destacar, por fim, que a perspectiva que orienta as políticas públicas, de maneira geral, fragmentária da realidade social e urbana e refratária às evidências científicas no embasamento de ações, políticas e programas governamentais, impõe riscos inadmissíveis à sociedade. É passado o momento de o Poder Público internalizar a complexidade ambiental no planejamento e execução de suas ações”, finaliza.
Em diversos países como Alemanha, Áustria, Estados Unidos, França, Nova Zelândia, Suíça os animais foram alçados como sujeitos de direitos, o que dá a eles um novo status jurídico. O parlamento francês, por exemplo, reconheceu em 2015 um projeto de lei que atualiza a legislação penal vigente e caracteriza os animais como seres sencientes e não como propriedade de seu dono. Essas iniciativas só reforçam uma das conclusões do artigo dos pesquisadores Carlos Saldanha, Érica Gaspar Silva e Rodrigo Vilani, de que “esse reconhecimento deve, também, ser seguido pelo Poder Executivo por meio da extinção da prática da eutanásia de cães, não apenas por se configurar uma prática ilegal e sem amparo científico, mas por representar um desvio do Estado na sua missão de construir uma sociedade livre, justa e solidária”.
Veja abaixo, o documentário "Leishmaniose visceral - conhecer para controlar", produzido pela VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz.
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Comentários
Isaac Tenório
dom, 09/10/2016 - 15:37
Calazar
Um absurdo, se o poder público não consegue fazer sua parte quanto ao mosquito. Tem que ser eliminado o cão. A doença é grave e mata.
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