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Num ano desconhecido, um manuscrito misterioso e muito antigo foi encontrado em uma arca, na igreja de S. Francisco de Curitiba, no Paraná. Hoje, estima-se que tenha sido redigido em 1703. Suas 230 folhas, feitas de papel de trapo, compilam receitas usadas no período do Brasil Colonial para as mais diversas doenças e achaques. Um registro raro das práticas de cura e de mezinhas daquela época, preparadas com minerais, plantas e partes de animais, inclusive excrementos e raspas de ossos. Um apanhado inédito de como a população daquela época identificava e nomeava seus males. E, também, um vestígio de como crenças e manifestações religiosas enovelavam-se aos processos terapêuticos.
Estima-se que o volume – que tem o título de Formulário Médico: manuscrito atribuído aos Jesuítas e encontrado em uma arca da Igreja de São Francisco de Curitiba - integre o acervo de obras raras da Fundação Oswaldo Cruz desde que sua biblioteca começou a ser criada, no começo do século 20. Sua importância é tanta que, em 2017, recebeu o título de “Memória do Mundo” pela Unesco. Agora, foi editado em livro pela Editora Fiocruz, apresentando a transcrição e a análise paleográfica de suas receitas. Ou seja: com informações complementares, capazes de situar melhor o leitor no contexto de feitura daquele manuscrito. Além disso, traz estudos históricos e de materialidade. Processo que envolveu mais de 40 profissionais de 17 instituições brasileiras, durante três anos, e que foi capitaneado pela Seção de Obras Raras da Biblioteca de Manguinhos, parte integrante do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict), da Fiocruz.
“O Formulário Médico já está digitalizado e disponível online, para qualquer internauta, há alguns anos. Mas o ganho dessa edição é enorme: o conteúdo transcrito amplia muito o entendimento sobre a obra. Não apenas por lançar luz ao registro escrito, mas também pela análise do objeto em si [o trabalho de pesquisa esmiuçou, por exemplo, o tipo de papel e a tinta usados na composição do manuscrito]”, destaca Maria Cláudia Santiago, coordenadora da Seção de Obras Raras do Icict e uma das organizadoras do volume. “O fato de estar manuscrito, com uma linguagem própria do começo do século 18 e ter várias abreviaturas, representava um obstáculo ao leitor. Um desafio tornado mais suave pela transcrição. A inclusão dos estudos históricos e sobre o contexto de produção da obra em si amplia a compreensão sobre o manuscrito, abrindo várias possibilidades para a pesquisa não apenas sobre as artes de curar e o imaginário daquela época, mas também para que o Formulário seja explorado por diversas áreas do conhecimento. ”
A obra reúne mais de cem males, seguidos de fórmulas “infalíveis” de cura. Doenças ou incômodos que variam desde aspectos mais triviais, como corrimento, “esquentamento” e verrugas, até afecções graves como cancro (câncer) e tísica (tuberculose). Há indicações para “doudice” (“Ponhase na cabeça a folha de jarro, que faz suar, e cauza sono”), “tresvarîoz” (“frangãoz vivos abertoz nas sollaz doz pez”) e virgindade (“pinhaz bravaz, esteva, murta, pedra hũe, folhaz de cannaz do Reyno, cascaz de Romaãs, e de Rozaz q. s. cozase em agua de murta”).
Chama atenção o volume e a variedade de doenças ligadas à prática sexual, ou que envolviam partes íntimas do corpo, como almorreima, cavalo, erpez, flatoz, gálico, madre, sesso, antraz, chagas, obstruções nos fluxos de sêmen, fluxos de sangue, frialdades.
Na busca por curar esses males, seguem-se “receitas de uma curiosa e fascinante composição, na qual ervas medicinais se misturam com práticas absolutamente inusitadas, tanto na forma de concebê-las, por seu conteúdo ou composição, quanto na forma de usá-las e lhes conferir praticabilidade”, afirma num dos artigos do livro o pesquisador João Eurípedes Franklin Leal, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que coordenou o trabalho paleográfico.
Há inúmeras formas de combater a enxaqueca, por exemplo. Algumas bastante incomuns aos olhos contemporâneos, como a sugestão de defumar as “fontes” com fumo de bosta de cavalo, ou tomar pelo nariz “defumadores de esterco de porco”. Outra opção: usar folhas de “Juhâ”, também chamadas de arrebenta cavalo. Hérnias eram tratadas com sementes de coentro seco, cozidas em vinagre e tornadas emplastro - mas também bosta de boi fresca, ou frita em azeite. Para curar queimaduras, a primeira indicação são ossos de cavalo também queimados, e tornados pó. Mas é possível recorrer ainda a um unguento feito de chumbo e azeite, bem como ao uso de sangue de galinha preta degolada. Dentre os inúmeros antídotos para cólica, recomenda-se beber corno de veado desfeito em vinho. Ou urina.
Surpresas para a medicina atual
Por trás desse aparente exotismo, porém, os pesquisadores ressaltam que um ponto surpreendente é como algumas receitas ainda estão presentes em práticas corriqueiras dos dias atuais. “Muitas vezes somos surpreendidos com medicamentos que ainda hoje são correntes e eficazes em seu uso popular. Recomendamos, por essa razão, que alguns elementos da flora e da fauna da nossa biodiversidade, então ditos como de sucesso, sejam, atualmente, motivo de pesquisas sérias, visando à busca de fármacos novos e eficazes que podem vir a surpreender a medicina atual”, prossegue Franklin Leal.
O óleo de copaíba, por exemplo, aparece indicado oito vezes no Formulário Médico, com referência ao seu uso para várias doenças. O bálsamo era usado contra vários tipos de ferimentos, como “mordedura de cachorro”, e contra “cólicas procedidas do frio”.
As práticas de cura descortinadas pelo compêndio também representam como se distinguiam da medicina europeia, refletindo uma cultura híbrida. É nítido como mesclam traços das culturas populares vindas da Europa, das tradições indígenas e africanas. Além disso, incorporam recursos sobrenaturais aos procedimentos terapêuticos.
“As receitas são registro de práticas e conhecimentos que estão presentes na nossa cultura até os dias atuais. Observando os textos reunidos no Formulário Médico, hoje, podemos nos dar conta da influência dessas práticas em nossa cultura, na medicina e na língua”, destaca Maria Cláudia. A pesquisadora chama atenção, por exemplo, para a receita contra herpes (“entrazes e erpes”), que indica que se estenda a pele de um sapo vivo sobre as feridas. “Acredito que a designação popular para o ‘sapinho’ venha do tratamento dado à herpes. É uma inferência, pois não elaboramos nenhum estudo filológico sobre o manuscrito. São, porém, vestígios, sinais de como as práticas de cura daquele tempo ainda incidem em nossa cultura.”
Lançamento no IHGB
A edição do Formulário Médico será lançada nesta terça (29), às 15h, no IHGB - Auditório Pedro Calmon, no Centro do Rio. Haverá uma mesa temática que vai debater pontos como a circulação de saberes na América portuguesa, análise paleográfica e documental, transcrição e diagnóstico de conservação.
Além da Fiocruz, participaram de sua elaboração instituições como Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Instituto Nacional de Tecnologia (INT) e Unisinos, dentre outras.
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