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O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) é conhecido por sua atuação em prol de moradia digna para todos. Mas, em julho passado, promoveu uma série de manifestações que apresentava um novo tópico na pauta de lutas: o acesso à telefonia e à internet móvel. Na ocasião, milhares de manifestantes se mobilizaram, em São Paulo, para cobrar melhorias nos serviços e a ampliação dos investimentos.
O que o MTST mostrou vai ao encontro daquilo que outras organizações da sociedade civil têm tentado deixar claro: que o acesso à internet de qualidade não é tão só um bem de consumo. Em vez disso, deveria ser tratado como um direito fundamental. É assim, aliás, que está descrito no recém-aprovado Marco Civil da Internet. No artigo 7º, a nova lei indica: “o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania”.
Apesar disso, menos da metade dos lares brasileiros estão conectados à internet. É o que aponta a edição mais recente da pesquisa TIC Domicílios, realizada pelo Cetic, o centro de estudos do Comitê Gestor da Internet no Brasil. O levantamento, feito entre setembro de 2013 e fevereiro de 2014, mostra que a proporção total de domicílios com acesso à internet é de apenas 43%. E as desigualdades por classe social e área são grandes: enquanto, na classe A, 98% dos lares têm acesso à rede, esse percentual cai para 8% nas classes D e E. Nas áreas urbanas, a proporção de casas conectadas é de 48%, enquanto nas áreas rurais é de apenas 15%.
“Isso é muito pouco. O Brasil é, hoje, a sétima maior economia do mundo. Ter menos da metade de seus domicílios conectados é um sintoma grave de como o acesso à internet ainda não é visto como um serviço fundamental e um direito de todos”, define Pedro Ekman, um dos coordenadores do coletivo Intervozes.
Ekman é uma das pessoas à frente da campanha “Banda Larga é um direito seu!”, que reúne dezenas de instituições desde 2011, para exigir que o Estado garanta que “todas as pessoas, independentemente da condição socioeconômica ou da localidade, tenham acesso a um serviço de banda larga de qualidade, barato e rápido”. Para isso, a campanha sugere uma série de princípios que deveriam balizar as ações do Executivo e do Legislativo na criação de políticas públicas proativas para o setor. São ideias sobre subsídios, regulamentação e regulação, que convergem para uma proposta central: a implantação de regime público – ou ao menos misto, uma vez que prevê o regime privado em algumas exceções - para a oferta de banda larga.
Hoje, o acesso à internet no país se dá, basicamente, a partir de planos oferecidos pelas empresas de telecomunicações. Ou seja, em regime privado. E essa é a principal crítica de estudiosos do tema sobre o modelo praticado no Brasil. “Apesar de se tratar de serviço de interesse coletivo e essencial, seus prestadores não estão sujeitos a obrigações de universalização, continuidade e modicidade tarifária (...), em razão do que os investimentos em infraestrutura e preços são definidos principalmente pelo interesse do mercado”, descreve carta aberta que a campanha divulgou em agosto, dirigida aos candidatos às eleições 2014.
Fazer a expansão da banda larga significa substituir a antiga infraestrutura de telefonia por uma nova infraestrutura de comunicações fixas e móveis: cabos óticos, ERBs (estações rádio base, que agrupam antenas de transmissão e recepção) e satélites. Isso representa, claro, um investimento muito elevado. “Como não existe uma política pública definindo esse investimento, o interesse privado orienta-o conforme a lucratividade”, explica Marcos Dantas, professor de Comunicação da UFRJ. “Assim, a disponibilidade de banda pode ser considerada bem distribuída nas cidades ou bairros onde exista mercado, isto é, aglomerados empresariais ou famílias de renda elevada, e tende à escassez nas cidades ou bairros onde a atividade econômica não é muito dinâmica e a renda média das famílias também é baixa.”
Em 2010, o Governo Federal lançou o Programa Nacional de Banda Larga (PNBL), com a meta de fazer com que o Brasil atingisse 40 milhões de domicílios conectados à rede mundial de computadores em 2014. De acordo com a TIC Domicílios, na virada de 2013 para 2014 tínhamos 27,2 milhões – e este número abrange todas as modalidades de acesso, não apenas a banda larga.
Mesmo que o PNBL ainda consiga atingir a meta até o fim de 2014, não terá conseguido eliminar aquela que é talvez a característica mais perversa da banda larga no Brasil: a desigualdade que ainda rege o acesso. A TIC Domicílios também registrou, por exemplo, que 24,2 milhões de domicílios com renda familiar de até dois salários mínimos estão desprovidos de acesso.
Outro levantamento recente, o Sistema de Indicadores de Percepção Social, do Ipea, observou “forte disparidade regional na utilização dos serviços [de internet], principalmente quando se compara Sudeste e Sul com Norte e Nordeste”. E aponta que a internet está em segundo lugar no ranking de serviços mais mal avaliados dentre os de telecomunicações: só perde para a telefonia móvel.
Um estudo, também do Ipea, revela de forma ainda mais contundente como o acesso à internet ilustra a desigualdade no país. Análise dos determinantes da demanda por conexões de banda larga fixa no Brasil, de João Maria de Oliveira e Calebe de Oliveira Figueiredo, observou a densidade de acessos à internet – usando o número de acessos por cada 100 habitantes -, de 2010 a 2012. Revela, com isso, um quadro de enorme disparidade. De um lado, estão estados como Amapá e Maranhão, com baixíssima densidade: 1,58 e 1,87, respectivamente. De outro, estão São Paulo e Rio de Janeiro, com 18 e 13,57.
A pesquisa aponta que os menores municípios têm as mais baixas densidades de acesso. Aqueles com mais de 500 mil habitantes possuem seis vezes mais acessos do que os que possuem até 20 mil habitantes. Disparidades que ficam ainda mais acentuadas se vistas sob o prisma da comparação entre regiões. “Grandes municípios no Sudeste têm densidade de acesso três vezes maior que seus similares no Nordeste, e quatro vezes maior em relação aos do Norte. O desnível regional é maior nas faixas compreendidas entre 20 mil e 100 mil habitantes. Nestas faixas de município, a densidade nas regiões Sul e Sudeste é seis vezes maior que nos mesmos municípios das regiões Nordeste e Norte”, descreve artigo publicado no número 30 da revista Radar, de dezembro de 2013.
A TIC Domicílios também traz dados importantes sobre a desigualdade no acesso. “Diferentemente do que muitas pessoas supõem, as disparidades não estão relacionadas apenas às questões socioeconômicas. São, sobretudo, uma questão geográfica”, destaca Winston Oyadomari, coordenador da pesquisa. “Os dois motivos mais citados para a falta de acesso são o preço alto do serviço e a sua indisponibilidade. Isso fica muito marcante em áreas rurais e na região Norte, por exemplo, que é grande e dispersa.”
Assim como a telefonia e a transmissão de imagens, a banda larga no Brasil é regida pela Lei Geral das Telecomunicações, de 1997. Ou seja: um conjunto de determinações pensado antes do boom digital, e que por isso priorizava, ainda, a telefonia fixa. “O arcabouço legal brasileiro foi feito no limiar da revolução propiciada pela convergência tecnológica. Nosso marco regulatório está anacrônico”, explica João Maria de Oliveira, técnico do Ipea. E esse é um dos fatores principais que amparam o grande obstáculo, hoje, para a massificação do acesso: a concentração mercadológica.
Em seu estudo, João Maria usou o chamado Índice de Herfindahl-Hirschman (HHI) para concluir: a concentração mercadológica – ou seja, o fato de as empresas atuarem basicamente nas mesmas áreas - interfere mais do que a renda para a baixa densidade do acesso.
A regulação brasileira, amparada numa lei criada antes da explosão da internet, não estimula a concorrência entre as empresas, de modo que a expansão da infraestrutura de banda larga não lhes parece lucrativa, descreve o especialista. “A Lei Geral das Telecomunicações está baseada no paradigma da comunicação via voz, que usa como parâmetros de cobrança a distância e o tempo de utilização. Na banda larga, os parâmetros são outros: velocidade e disponibilidade. Assim a comunicação via voz é mais cara para o consumidor e mais interessante para as empresas ofertantes dos serviços, que perdem com o aumento da banda larga.”
Apesar de os debates nas organizações civis defenderem o regime público para a internet, o governo federal destaca que a mudança envolveria obstáculos complexos. É o que explica Artur Coimbra, diretor do Departamento de Banda Larga do Ministério das Comunicações: “Hoje, existem cerca de 3 mil empresas que prestam serviços de banda larga no Brasil. No regime público, faríamos uma licitação que as substituiria por uma única concessionária, e esta teria a tarefa de fazer a universalização do acesso. Ou seja, é algo muito difícil de ser viabilizado.”
Coimbra argumenta que há, porém, instrumentos que permitem, no modelo atual, expandir e baratear a banda larga. E cita números da própria TIC Domicílios para ilustrar avanços. “O crescimento da banda larga, desde o começo do PNBL, tem aumentado mais no Norte e no Nordeste do que nas outras regiões. Isso significa que a desigualdade não aumentou, está diminuindo.” Por isso, completa: “O regime público pode ser inviável e desnecessário. Mas estamos abertos à discussão [com as instituições da sociedade civil que defendem o contrário]”. Ao mesmo tempo, admite que ainda não há nada definido para a próxima etapa do PNBL, cujo escopo previsto originalmente vai apenas até 2014.
Winston, coordenador da TIC Domicílios 2013, também enumera melhorias: “Desde 2008, o Brasil vem registrando um crescimento muito importante, em especial na área rural [que passou de 4% de domicílios conectados, em 2008, para 15%, em 2013] e nas classes B e C [que pularam de 58% para 80% e de 16% para 39%, respectivamente]”. Mas acrescenta: “Ainda assim, estamos num patamar muito abaixo dos países desenvolvidos e, mesmo na América Latina, estamos atrás de Uruguai, Argentina e Chile.”
Coimbra chama atenção para o aumento no uso de celulares para o acesso à internet. Este, aliás, é o índice que tem sido usado como carro-chefe na divulgação da TIC Domicílios. De acordo com a pesquisa, 31% dos brasileiros com 10 anos ou mais acessaram a rede pelo telefone móvel. Esse percentual mais que dobrou nos últimos dois anos. Em 2011 era de 15% dos usuários e em 2012, 20%.
“Ainda não temos nenhuma pesquisa que mostre de forma clara como os smartphones estão sendo usados para o acesso à internet nos domicílios”, lamenta o representante do Ministério das Comunicações, para quem o acesso móvel à internet pode ser uma alternativa eficaz. “Naturalmente, a compra do aparelho é uma barreira para famílias de baixa renda. Porém, elas têm mais facilidade em comprar esse tipo de equipamento do que pagar serviços muito caros [o acesso à banda larga fixa]. Na compra do telefone, que muitas vezes tem o valor semelhante ao de um computador, as famílias assumem o pagamento num período definido, e não precisam se comprometer com um serviço de valor alto, que terão de pagar todos os meses.”
A ideia de que a explosão recente no uso de smartphones pode representar a universalização do acesso à internet é, porém, muito controversa. Os especialistas citam barreiras como o preço dos aparelhos e o próprio investimento que ainda deve ser feito para ampliar as redes móveis.
“Existe de fato a expectativa de que o celular poderia ser um atalho para o acesso domiciliar. No entanto, o que a TIC Domicílios mostra é que as variáveis que definem o acesso móvel são as mesmas para a internet fixa: faixa etária e classe socioeconômica. Ou seja, o acesso via celular está mais atrelado aos usuários mais jovens e de classes socioeconômicas mais altas”, define Winston.
O que permanece como consenso é a importância de se incorporar o acesso à internet como uma premissa para o desenvolvimento do país e para a conquista da cidadania. “Em muito pouco tempo, a internet vai ser o próprio meio de comunicação, e não apenas um dentre outros. Todos os outros meios vão passar por essa plataforma. Quem não tiver acesso a ela, estará excluído dos processos de comunicação, e incapaz de ter acesso a uma série de direitos básicos, como a emissão de uma nota fiscal ou o agendamento de uma consulta médica. Por isso o acesso à internet tem de ser um direito fundamental, e não apenas um bem de consumo, um acessório”, destaca Ekman.
João Maria, do Ipea, chama atenção para um aspecto que não pode passar despercebido: o acesso à internet não significa apenas um objetivo a ser conquistado, mas também é, ele próprio, um instrumento essencial para o combate às iniquidades. “É comum a ideia de que são as desigualdades arraigadas no país que impedem a massificação da internet. Mas o que precisa ficar claro é que a internet é uma ferramenta poderosa para combater essa desigualdade histórica. Onde há internet de qualidade é possível que as pessoas reivindiquem seus direitos e é possível que as empresas se instalem, que se amplie o desenvolvimento econômico. A massificação tecnológica é, ela própria, uma política pública de combate à desigualdade”
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