">
O impacto das tecnologias da informação e da comunicação nos processos de produção, circulação e apropriação de bens simbólicos é tema de investigação e militância do pesquisador Sergio Amadeu, membro do conselho científico da Associação Brasileira de Pesquisadores de Cibercultura (ABCiber) e do Comitê Gestor da Internet no Brasil. Presente às comemorações dos 25 anos do Icict, em 7 de abril de 2011, ocasião em que proferiu a palestra Metalinguagem digital e as políticas culturais, Amadeu defendeu a consolidação de um novo paradigma técnico-econômico para a sociedade contemporânea.
Nesta entrevista, Amadeu explora os conceitos de conhecimento aberto e acesso livre à informação e comenta suas implicações para Ciência, Tecnologia e Saúde. Na arena de debates, o pesquisador contrapõe diferentes modelos de geração de conhecimento científico e produção cultural, direitos autorais, propriedade intelectual e a lógica do compartilhamento, essencial para a sociedade em rede. E provoca: “Estamos claramente superando o mundo industrial e caminhando para a era informacional – tendência que traz profundas alterações para o modelo capitalista, a sociabilidade e a convivência entre pessoas e instituições”.
Sociólogo de formação e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), Sergio Amadeu participou da implantação dos Telecentros na América Latina e da criação do Comitê de Implementação de Software Livre do Governo Federal. Também foi presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação da Casa Civil da Presidência da República e é professor da Universidade Federal do ABC (UFABC). É autor de diversos livros – dentre eles, “Software livre: a luta pela liberdade do conhecimento”; “Exclusão digital: a miséria na era da informação; e Comunicação digital e a construção dos commons: redes virais, espectro aberto e as novas possibilidades de regulação” – e um dos criadores do blog coletivo 300 (www.trezentos.blog.br).
SA – O movimento de acesso livre, ou open access, em inglês, é uma mobilização mundial para promoção do acesso livre e gratuito à literatura científica, respeitando direitos autorais e definindo autorizações de uso. Este conceito se comunica com a ideia de conhecimento aberto, que surge da necessidade da sociedade em rede, que preza pela liberdade e o compartilhamento de ideias, se contrapor aos processos de bloqueio da disseminação da informação, sustentados pelo persistente modelo técnico-científico do capitalismo, que preconiza a restrição do acesso a produtos, conhecimentos e ideias.
Esta perspectiva da restrição se traduz em políticas de proteção ao conhecimento um tanto contraditórias. Na Ciência, periódicos limitam economicamente as possibilidades de publicação e acesso à informação. Na Cultura, os grandes conglomerados empresariais insistem em restringir o compartilhamento de bens simbólicos pelos consumidores, prática essencial numa sociedade em rede. A contradição consiste na criação dos processos de produção da Ciência e da Cultura: tanto o conhecimento científico quanto os bens culturais são gerados a partir da reconfiguração do conhecimento científico ou da cultura pré-existente – por isso o livre acesso às produções anteriores é tão fundamental.
Esta lógica vem sendo modificada pelo advento e a popularização de tecnologias de informação e comunicação que, cada vez mais revolucionárias, vêm modificando profundamente a forma como pessoas e instituições se relacionam e instituindo uma perspectiva mais livre para a produção, circulação e apropriação de ideias.
SA – As transformações políticas, econômicas e sociais que estamos vivendo em função do boom das tecnologias da informação e da comunicação têm impactos profundos também em áreas como a Saúde e a Educação, que mesclam de forma muito interessante as perspectivas da tradição e da inovação.
Iniciativas como a Biblioteca Virtual de Saúde e a Revista Reciis, do Icict, que motivam o acesso livre ao conhecimento, são pioneiras e demonstram que instituições de ensino e pesquisa – e o próprio conhecimento científico – têm muito a ganhar ao abrir seus recursos científicos e educacionais. Experiências como essas são inspiradoras e a tendência é que este movimento ganhe cada vez mais força, porque as pessoas começam a perceber que, no mundo das redes, a colaboração é mais importante que simplesmente o bloqueio do acesso ou a competição institucional. Os centros que abrem a sua produção científica ou cultural não perdem a sua excelência – ao contrário, intensificam relacionamentos, o que os fortalece ainda mais em suas áreas de atuação.
Neste contexto de maior liberdade de produção e compartilhamento de informação, observamos uma clara tendência à inovação nos métodos de produção do conhecimento científico e tecnológico. Recentemente, a versão online do prestigiado periódico Nature publicou um artigo que reconhece a relevância da chamada “biotecnologia de garagem” – prática bastante difundida em países como Inglaterra, Estados Unidos e Índia. A modalidade de ciência amadora, praticada por apaixonados por biologia molecular, comprova que é possível gerar resultados relevantes em biotecnologia fora dos grandes laboratórios e escritórios de patentes. É um novo modelo de produção de conhecimento que envolve questões pertinentes sobre biossegurança, política e economia e acende o debate sobre a liberdade de produção de conhecimento.
SA – As ideias de conhecimento aberto e de acesso livre à informação compõem os pilares de um novo paradigma em estruturação na sociedade contemporânea: a chamada era informacional. A capacidade da humanidade de armazenar, processar e distribuir informação aumentou drasticamente nas últimas décadas, o que leva o conhecimento para o centro das relações de poder, em âmbito político, econômico, técnico-científico e cultural.
Neste novo paradigma, conhecido também como capitalismo cognitivo, a lógica da repetição típica do mundo industrial é substituída pela lógica da invenção, potencializada pelas infinitas possibilidades de recombinação ofertadas pela prática do compartilhamento.
Neste contexto, no qual o conhecimento é reconhecido como a base para a produção de novos conhecimentos, o acesso livre à informação torna-se imperativo. E, contraditoriamente, é neste momento de intensa efervescência que grandes corporações insistem em construir monopólios de acesso ao conhecimento.
SA – Hoje, as tecnologias da informação e da comunicação têm uma relevância brutal nos processos sociais, culturais, políticos e econômicos e é muito difícil sustentar setores da sociedade apartados destas ferramentas. O mundo digital libertou os conteúdos de seus suportes físicos e o exercício da propriedade, antes tão natural, tornou-se bastante complexo. Nunca houve tanta possibilidade de compartilhamento, sobretudo com a expansão das redes digitais. E esta grande possibilidade de compartilhamento gera um endurecimento das legislações de propriedade intelectual naqueles que querem criar uma escassez induzida, com o objetivo de precificar o acesso aos seus bens.
Na área da Ciência, um episódio recente ocorrido em uma universidade dos Estados Unidos exemplifica perfeitamente como estes tratados estão ultrapassados e, em vez de proteger, emperram o avanço do conhecimento. Um grupo de pesquisadores que investigava a potencialidade de um composto molecular para o tratamento do câncer de mama foi processado por um laboratório da indústria farmacêutica que detinha a propriedade sobre a substância e foi obrigado a interromper o estudo.
De forma alguma é possível justificar a ação do laboratório em prol da inventividade, da criatividade. Pelo contrário, este tipo de ação é promovida para bloquear o conhecimento. É uma contradição que beira a esquizofrenia: a humanidade cria uma rede capaz de recombinar e multiplicar o conhecimento e, ao mesmo tempo, quer impor uma legislação extremamente dura contra esta dinâmica.
SA - A busca deste equilíbrio é complexa. Hoje uma série de ações visa ao recrudescimento da propriedade intelectual, por exemplo, através da extensão dos prazos de proteção, de interpretações rígidas sobre o que seria uso indevido, enfim, da restrição do uso de obras e conhecimentos.
Ao meu ver, o equilíbrio pode ser encontrado a partir de uma maior flexibilidade das legislações de Copyright, da lei de patentes e de tratados internacionais, sobretudo o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual (TRIPS, na sigla em inglês). Um modelo que tem se mostrado promissor é o do movimento Creative Commons, que disponibiliza licenças flexíveis para obras intelectuais, sem fins lucrativos. Com diferentes graus de proteção, as licenças permitem que obras sejam distribuídas ou recombinadas para dar origem a novas criações, sempre com a permissão do autor.
Seguindo este modelo, recentemente, a Prefeitura de São Paulo decidiu liberar a reconfiguração de seus materiais didáticos pelos professores, a fim de adequar o conteúdo às diferentes realidades sociais, econômicas e culturais encontradas nas escolas. Tudo isso é possível se flexibilizarmos a ideia de Copyright de forma a garantir o real uso das possibilidades que a vida em rede oferece.
SA – Os novos usos da comunicação, da informação e da tecnologia interferem diretamente nas relações de poder. Esta é uma tendência clara da atualidade, em que um grupo de indivíduos consegue articular um sentimento, junto a milhares de outros indivíduos, a partir das redes – o que seria impossível sem a facilidade de comunicação possibilitada pela internet.
Um exemplo é a permanência do site Wikileaks, mesmo após diversas investidas do governo norte-americano de tirá-lo do ar. Seria praticamente impossível para a estrutura do Estado investigar, controlar e capturar essa rede de solidariedade voluntária que a iniciativa formou ao seu redor. Este e outros episódios recentes sinalizam que está em curso uma forte alteração nas relações de poder entre Estado e sociedade. Por mais que o Facebook tenha sido utilizado por autoridades egípcias para identificar e prender ativistas envolvidos nos protestos contra o presidente Mubarak, a rede social foi o meio usado para convocar manifestações, sem anuência ou participação dos partidos políticos.
É importante ressaltar que esta tendência, apesar de relevante, ainda não configura um modelo estruturado. As instituições de poder ainda não aderiram ou assumiram esta configuração: a maioria dos Estados permanece como instituição vertical, não como um Estado em rede. É um movimento em curso de democratização, de enredamento, que ainda está incipiente.
SA – Quando falamos em tecnologia, é importante destacar as possibilidades de democratização não só do uso, mas também do processo de criação de novas ferramentas. E a lógica do software livre talvez seja a melhor forma de exemplificar este processo: o software livre possui um autor, ou vários autores, mas não possui donos – o usuário tem o direito de, a qualquer momento, também atuar como desenvolvedor. Isso é possível por meio das plataformas que permitem – e fomentam – a criação de novos códigos, a partir de outros que já existem.
Muitos avanços foram registrados nesta área desde a década de 1980, a partir da inspiração de Richard Stallman para criação da Free Software Foundation e o movimento Licença Pública Geral (GNU, na sigla em inglês). A partir daí surgiram centenas de milhares de softwares em código aberto, gerando um grande impacto em diferentes áreas do conhecimento. Hoje, a ideologia do compartilhamento e a lógica do software livre extrapolam a ciência e a tecnologia e se aplicam a outras áreas, como a educação e as artes.
SA – A legislação brasileira referente à Internet é extremamente avançada e é reconhecida internacionalmente como uma esperança para a regulamentação da rede, em consonância ao seu princípio mais fundamental: a liberdade. Diversos especialistas, pesquisadores e ativistas da área, em todo o mundo, vêem a nossa experiência como a possibilidade para um salto em outra direção neste cenário confuso em que vivemos.
A partir de uma iniciativa do Ministério da Justiça, o Comitê Gestor da Internet no Brasil vem coordenando o processo participativo para criação de um projeto de lei para definir os direitos dos brasileiros na internet. O objetivo é pactuar uma tábua de direitos para que, posteriormente, algumas violações sejam consideradas crimes; outras, infrações.
O mais interessante da iniciativa é que, desde a sua concepção, o projeto de lei vem sendo construído coletivamente e integra centenas de contribuições. A experiência está na contramão do que vem acontecendo em países que adotam medidas de restrição à liberdade na Internet, como França, Inglaterra, Espanha e Estados Unidos, e demonstra como a rede também transforma os processos de formulação política, tornando-os mais democráticos e participativos.
Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz)
Av. Brasil, 4.365 - Pavilhão Haity Moussatché - Manguinhos, Rio de Janeiro
CEP: 21040-900 | Tel.: (+55 21) 3865-3131 | Fax.: (+55 21) 2270-2668
Este site é regido pela Política de Acesso Aberto ao Conhecimento, que busca garantir à sociedade o acesso gratuito, público e aberto ao conteúdo integral de toda obra intelectual produzida pela Fiocruz.
O conteúdo deste portal pode ser utilizado para todos os fins não comerciais, respeitados e reservados os direitos morais dos autores.