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A vulnerabilidade de usuários de drogas ilícitas, principalmente cocaína em pó e injetável, ao HIV foi o objetivo de uma pesquisa realizada em Curitiba (PR) pelo epidemiologista Francisco Inácio Bastos (Lis/Icict), em parceria com pesquisadores da Universidade de Princeton (EUA) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Com a aplicação de um método inédito no país, os pesquisadores constataram que as estimativas referentes ao consumo de drogas pesadas foram cinco vezes maiores do que os dados oficiais do inquérito domiciliar realizado na cidade, em 2004, pelo Ministério da Saúde (MS).
Implementado em 2010, o estudo consistiu na realização de entrevistas com 500 adultos acima de 18 anos de uma amostra representativa da população geral de Curitiba. Denominado Scale-up, o método, criado pelos pesquisadores norte-americanos H. Russell Bernard & Christopher McCarty, da Universidade da Flórida, consiste na aplicação de um questionário com perguntas genéricas sobre determinados comportamentos da rede social do entrevistado, o que indiretamente indica os hábitos das pessoas que lhe são próximas.
A pesquisa, encomendada à Fiocruz pelo escritório de Genebra do Programa Conjunto das Nações Unidas em HIV/Aids (Unaids), foi descrita no artigo “Assessing network scale-up estimates for groups most at risk for HIV/AIDS: Evidence from a multiple method study of heavy drug users in Curitiba, Brazil”, a ser publicado na revista científica American Journal of Epidemiology.
Projeto de custo relativamente baixo – U$ 70 mil, provenientes da Unaids –, o Scale-up é adequado a pesquisas sobre saúde pública, pois pode ser aplicado em diversas regiões, simultaneamente, com uma pequena amostra da população local, sem que seja preciso recorrer a populações de difícil acesso, como usuários de drogas, pessoas envolvidas com atividades criminais, etc.
“O aspecto inovador do Scale-up é que as pessoas acabam falando de si mesmas e de seus próximos sem se identificar. Além disso, o método extrai do entrevistado respostas que podem ser verificadas e validadas em cartórios, escolas, hospitais, etc. Por exemplo, o agente pode perguntar sobre quantas pessoas o entrevistado conhece que morreram, o que pode ser apurado no registro de óbitos da cidade onde é desenvolvida a pesquisa, quantas pessoas conhece que estudam em escolas publicas, dão aulas no Ensino Médio, recebem Bolsa Família, consomem determinado tipo de droga e assim por diante”, explica Bastos.
De acordo com o pesquisador, as respostas foram contrastadas com 20 bancos de dados públicos de Curitiba, o que facilitou a validação das informações. No caso de populações mais vulneráveis ao vírus da aids e estigmatizadas – consumidores de drogas ilícitas, trabalhadoras do sexo e homens que fazem sexo com homens – o método propicia o levantamento de informações mais confiáveis, pois não expõe os entrevistados a perguntas que eles não desejam responder.
“O método lança mão de uma amostra representativa da população geral, daí a escolha de uma cidade com boas condições de circulação como Curitiba, que é uma cidade grande, mas com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) alto, boa infra-estrutura urbana e excelente rede de transportes públicos”, acrescenta.
Para Francisco Bastos, dependendo das características dos locais onde são realizadas as entrevistas, a apuração pode ser muito rápida, como no caso da capital do Paraná. “Mas temos que levar em conta as regiões onde será mais difícil aplicar o método, principalmente onde há favelas, condomínios de alto luxo fechados, locais onde não há transporte, ou onde há conflito entre facções criminosas”, pondera o pesquisador.
Inovador na geração de informações, o Scale-up deixa à mostra uma realidade perturbadora: de acordo com Francisco Bastos, o Brasil é o país da cocaína, tanto como área de trânsito, como de consumo, o que confirma os dados do Relatório Mundial sobre Drogas divulgado em junho pela Organização das Nações Unidas (ONU). “O poder aquisitivo da população aumentou, as redes do tráfico aumentaram. Mas percebemos que varia um pouco o padrão de consumo entre as classes sociais. Dificilmente encontramos uma pessoa de classe alta fumando crack, mas nosso trabalho de campo identifica pessoas de classe baixa usando cocaína sob várias modalidades, do crack à cocaína em pó, passando pela pasta base e cigarros de maconha, ou tabaco, polvilhados com cocaína”, completa.
Por Francisco Inácio Bastos
Ao se utilizar um método novo de pesquisa é preciso tentar evitar, ou ao menos minimizar, os possíveis erros associados à sua aplicação. No caso do método scale-up, jamais aplicado antes no Brasil, procurou-se avaliar possíveis erros de estimativa secundários ao que é conhecido nessa área como “erro de transmissão”. Ou seja, determinado problema existe de fato (no nosso caso específico, o consumo de drogas ilícitas), mas ele é pouco visível para a sociedade. Com isso, uma pessoa poderia ter na sua rede de contato social uma pessoa que, de fato, faz uso regular de drogas ilícitas, mas não percebe isso e, por essa razão, informa ao entrevistador, que não conhece pessoas que façam uso regular de drogas no seu convívio social.
Para avaliar de forma preliminar essa questão, nosso grupo desenvolveu um jogo bastante simples e de baixíssimo custo (constando apenas de um tabuleiro de cartolina colorida, um baralho e pequenos peões), que foi aplicado a uma amostra de usuários de drogas.
O jogo, de aplicação extremamente simples, está descrito e ilustrado em um arquivo wiki disponível na Internet em: http://wiki.stoa.usp.br/Usu%C3%A1rio:Abdo/MMMNS/Jogo_dos_Contatos
O artigo resultante da aplicação do referido jogo também está disponível para consulta na Internet em: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0378873310000559
O jogo foi extremamente bem recebido pelos usuários de drogas, que o consideraram divertido e agradável. Houve pouquíssimas respostas faltantes, e o jogo apontou que, de fato, o consumo de drogas ilícitas é percebido de forma seletiva pelas pessoas que integram a rede de contatos dos usuários.
A literatura internacional mostra que populações marginalizadas e estigmatizadas tendem a se associar a outras pessoas que têm os mesmos hábitos (o que é conhecido tecnicamente como “exposição seletiva”). De forma complementar, pessoas que se engajam em comportamentos marginalizados e estigmatizados tendem a compartilhar informações acerca desses hábitos com pessoas que têm os mesmos hábitos, ou seja, no nosso estudo específico, supunha-se que usuários de drogas tenderiam a se congregar com outros usuários, e compartilhariam informações sobre seus padrões de consumo preferencialmente com seus pares que fazem uso dessas substâncias ilícitas (o que é conhecido tecnicamente como “revelação seletiva”).
Ambos os fenômenos foram observados claramente no nosso estudo, observando-se que cerca de 90% dos usuários sabiam que seus próximos eram também usuários de drogas. No entanto, quando o membro da rede do entrevistado não era ele/ela próprio/a um(a) usuário(a) de drogas, o seu conhecimento de que a pessoa da sua relação era um usuário de drogas era bastante menos freqüente. Ou seja, a visibilidade social de um usuário de drogas é bastante maior para quem pertence à sua rede de usuários do que para a sociedade em geral (composto, em sua maioria, por não usuários ou usuários esporádicos de drogas ilícitas).
Tais achados foram utilizados posteriormente na geração de estimativas brutas (não corrigidas) e corrigidas no artigo que está sendo agora publicado no American Journal of Epidemiology.
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