Comunicação e informação em debate na 15ª CNS

por
Marina Maria
,
08/12/2015

Um encontro simbólico para a participação social em defesa do direito à saúde


De 1º a 4 de dezembro, acontece a 15ª Conferência Nacional de Saúde, um encontro simbólico para a participação social em defesa do direito à saúde e na reivindicação, formulação e avaliação de políticas públicas do setor no Brasil. Esta edição tem como tema “Saúde pública de qualidade para cuidar bem das pessoas: direito do povo brasileiro” e vai reunir em Brasília delegados e observadores de todo o país, após meses de discussões nas etapas municipais e estaduais desse processo.

Do mesmo modo que os conselhos de saúde, as conferências acontecem nas três esferas de governo (federal, estadual e municipal) e estão entre as formas de participação comunitária previstas pela Lei nº 8.142/90 que, com a Constituição Federal de 1988 e a Lei Orgânica da Saúde nº 8.080/90, regulamentam o Sistema Único de Saúde (SUS).

Se, por um lado, a participação é uma conquista do movimento pela reforma sanitária, a fim de defender a presença de atores sociais na definição e execução das políticas de saúde, por outro, sua institucionalização tem originado desafios para a garantia de princípios democráticos, como apontam pesquisas na área. Muitos desses desafios envolvem aspectos da comunicação e informação. Por exemplo, como garantir vez e voz à diversidade de grupos presentes nos espaços de participação em saúde na expressão e defesa de suas reivindicações, em meio a tantas disputas e jogos de força?

De acordo com Valdir Oliveira, professor do Programa de Pós-graduação em Informação e Comunicação em Saúde do Icict/Fiocruz e ex-conselheiro municipal de saúde em Brumadinho (MG), na medida em que a participação pressupõe relação, é inconcebível que se efetive sem comunicação. “Não existe nem participação nem descentralização sem comunicação e informação, porque implica em diferentes atores participando, não apenas o Estado. E a comunicação é fundamental para que haja mediação entre esses atores”, ressalta Oliveira, que ainda observa a existência de contradições entre as diretrizes do SUS para a participação e o que se evidencia na prática. “Nem sempre os procedimentos comunicacionais e pedagógicos se dão tal como é proposto pela lei (...). Apesar da generosidade da filosofia do SUS, a prática dele se distanciou muito daquilo que propõe e transformou questões da participação mais como rituais participatórios do que efetividade política”, completa.

Extrapolando os processos participativos, a comunicação e a informação ganham papel fundamental na defesa do direito à saúde em geral. Tal como a saúde é um direito humano, assim também podem ser reconhecidas, na medida em que se expressar e se informar são condições fundamentais, conforme defende o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão. Este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras”.

Na 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), um marco para a criação do SUS, o direito à informação e comunicação, juntamente com a educação, já eram situados como inerentes ao direito à saúde. Para Rodrigo Murtinho, vice-diretor de Comunicação e Informação do Icict/Fiocruz, o reconhecimento da comunicação, informação e saúde como direitos humanos está relacionado a demandas contemporâneas de democratização do Estado. “Pela centralidade que têm na engrenagem do sistema, a democratização da comunicação e da informação tem papel estratégico na ampliação de direitos. A afirmação dos direitos à comunicação e à informação está associada à redistribuição de recursos de poder, indispensáveis ao exercício da cidadania e autonomização das instituições”, explica Murtinho.

O Icict/Fiocruz no debate

Reconhecer a relação intríseca entre comunicação, informação e saúde vai ao encontro da origem do Icict/Fiocruz e sua missão de participar da formulação, implementação e avaliação de políticas públicas e desenvolver e executar ações nesta área. Por conta disso, o Instituto atua em diferentes frentes, seja por meio de pesquisas, seja por iniciativas como o “I Diálogo PenseSUS – Democracia, comunicação, informação e direito à saúde: Mobilização para a 15ª Conferência Nacional de Saúde”, realizado em setembro, na Fiocruz, e que apresentou um panorama de debates neste contexto (informações no box, pág. 25).

Tendo como pano de fundo o I Diálogo PenseSUS, esta edição da Inova Icict reúne a seguir reflexões sobre pautas de comunicação e informação que podem contribuir para os debates na 15ª Conferência Nacional de Saúde e que evidenciam a urgência em se ampliar essa discussão.

Participação social em saúde e desafios de comunicação e informação

Participantes do I Diálogo PenseSUSCom a institucionalização da participação social, é estabelecido que os conselhos de saúde tenham um caráter deliberativo, atuando na formulação de estratégias e no controle da implementação das ações no setor. A legislação também determinou que as conferências aconteçam de quatro em quatro anos, para que seja possível avaliar e propor diretrizes para a formulação da política do SUS. Ficou definido que a presença da sociedade se dá pela representatividade assegurada a usuários, gestores, profissionais e prestadores de serviço de saúde, reunindo uma pluralidade de histórias de vida, demandas e interesses, na busca por visibilidades e convergências.

Ao mesmo tempo em que essa diversidade de atores sociais é um ganho para a democracia participativa, um dos desafios está justamente em assegurar equidade às representatividades no direito à comunicação e acesso à informação para o exercício da participação. Segundo Valdir Oliveira, é possível identificar, sobretudo em conselhos de saúde, a reprodução das desigualdades materiais e simbólicas da sociedade, com relações hierárquicas que interferem na efetividade da condição democrática. Entre as dificuldades mais graves para o funcionamento destes espaços, Oliveira destaca uma assimetria nos fluxos comunicacionais e informacionais, de forma que a verticalidade do poder dificulta o controle social e a comunicação entre os membros. “Existe comunicação? Sim, existe. Existe informação? Existe. Mas para manter uma política clientelista entre o poder gestor e a população e não para resolver os desafios da descentralização e garantir a participação efetiva das pessoas que podem contribuir para que os recursos da saúde se revertam para a sociedade”, analisa o professor.

Como tentativa de efetivar a participação e superar essas dificuldades, Oliveira lembra que comunicação não é apenas disseminar informação nas redes sociais ou em quadro de avisos. É rever a produção e circulação da informação a tal ponto que se permita a interação entre as pessoas, de forma que suas diferenças ou convergências possam ser debatidas e seja possível avançar. Para fortalecer processos comunicacionais mais igualitários e ampliar a capacidade de participação, ele apresenta como caminho pensar em estratégias de formação cidadã dos conselheiros, com base no entendimento do educador Paulo Freire sobre empoderamento.

Paulo Freire retoma a ideia de empoderamento de maneira simples e objetiva. É fazer com que cada sujeito que participa das lutas sociais tenha capacidade de intervir comunicacional e politicamente. Para isso, ele precisa ser formado também. O conselho poderia ser uma instância de formação do cidadão que o SUS pressupõe (...). Precisamos de uma formação para preparar pessoas não apenas sobre a legislação do SUS, mas para dar condições de o sujeito intervir nos espaços e com a capacidade de construir pactuações.

Outra dimensão a ser considerada quando se pensa em comunicação, informação e participação em saúde diz respeito ao conhecimento da população sobre esses instrumentos participativos e suas atribuições e às estratégias adotadas para possibilitar uma aproximação entre conselhos e cidadãos. Quem traz essa discussão é Michely Ribeiro, conselheira nacional de saúde pela Rede Lai Lai Apejo - População Negra e Aids, que identifica como um desafio o estabelecimento de um diálogo mais direto dessas instâncias de participação com a sociedade.

Para ela, é preciso esclarecer às pessoas sobre a existência e o papel dos conselhos na garantia do direito à saúde, diversificando os meios de comunicação utilizados, dada a discrepância da realidade socioeconômica da população brasileira e a dimensão do país. “No caso do Conselho Nacional de Saúde, o diálogo com a população tem acontecido fortemente nas redes sociais da internet. É importante uma aproximação maior com as rádios, principalmente comunitárias, tentando acionar ao máximo as rádios locais”, sugere Michely, que avalia que a busca individual ao Conselho Nacional de Saúde é muito baixa, feita em geral por movimentos da sociedade civil organizada.

Além de ferramentas para democratizar o diálogo com a população, a conselheira ressalta a importância de se rever a linguagem utilizada nestes processos comunicacionais, procurando incorporar uma abordagem menos tecnicista às informações. Ela defende que essa aproximação aconteça a partir da atuação de diferentes conselheiros nacionais de saúde nos municípios os que representam, para estimular o vínculo com os conselhos locais. “Temos inúmeras dificuldades, seja pela compreensão política do que acontece na saúde do país, seja pela forma como que o Conselho [Nacional de Saúde] tem escolhido dialogar. São nessas estratégias que temos tentado trabalhar. Não acredito que tenhamos um diálogo fluido ou que a população se reconheça espelhada no Conselho. É um momento melhor, mas ainda caminhamos para isso”, complementa. 

As TICs e as novas formas de participação

Francini Guizardi, pesquisadora do Laboratório de Educação, Mediações Tecnológicas e Transdisciplinaridade em Saúde, da Escola Fiocruz de Governo (DF), traz uma outra problematização para a participação ao avaliar que novas formas de mobilização têm sido observadas em decorrência da internet e das tecnologias de informação e comunicação (TIC), gerando desafios para os processos organizativos das lutas sociais. Ela analisa que essas articulações têm desencadeado ação política sem a mediação das tradicionais organizações de representação, como aconteceu nas manifestações de junho de 2013 no Brasil:  “Temos a chamada Jornada de Junho de 2013 como um processo amplo de participação e mobilização social, com pautas diversificadas (...). Este espaço de participação tem produzido movimentos e efeitos diferentes dos que estávamos acostumados a conhecer pela luta partidária ou movimentos sociais mais tradicionais e a forma pelas quais se organizam”, avalia a pesquisadora.

Segundo ela, o desafio para a participação social em saúde está neste contexto de transição da forma de organizar a luta política e a representação, e em como preservar a pluralidade de demandas apresentadas:

“A pluralidade das demandas é legítima. Mas como instituir mediação por meio de representação, organizar esse processo político preservando a riqueza da diversidade e manter a convergência em torno de questões comuns a essas demandas e sujeitos e às lutas colocadas? É um horizonte que está em construção (...). O processo político das conferências poderia ser um laboratório dos efeitos que esse novo formato pode provocar”.

Democratização da informação e da comunicação para o direito à saúde

Com base nas diretrizes do SUS para a garantia da participação social em saúde, discutir o direito à comunicação e informação implica em debater a democratização dos meios de produção, a qualidade do que se informa e os recursos necessários para se assegurar acesso e circulação. Neste sentido, Michely Ribeiro pondera que, em muitos casos, os processos comunicacionais e informacionais em saúde não tratam daquilo que a população quer saber. “Que informação as pessoas querem ter para a garantia de sua saúde? Temos que pensar que a informação tem que ser produzida com as pessoas participando diretamente desse processo (...). Como conseguimos trazê-las para a construção da comunicação ou da produção de informação que realmente esteja a serviço da população de uma forma geral? Isso influencia o exercício da participação e do controle social em saúde”, destaca Michely.

Esta discussão tomou corpo durante o I Diálogo PenseSUS, sobretudo na mesa redonda “Comunicação e informação em pauta: o que isso tem a ver com o direito à saúde”. Além da cobertura midiática sobre a saúde, a mesa tratou da comunicação pública, destacando a possibilidade de criação de novos canais a partir do projeto de digitalização da radiodifusão e que teriam como temáticas cultura, educação, cidadania e poder executivo. Com esses canais, está previsto espaço para uma programação sobre saúde, a partir de convênio com a TV Brasil e acordo interministerial assinado com o Canal Saúde, sediado na Fiocruz (RJ). A participação da sociedade na produção dos conteúdos desses canais é fundamental para que sejam de fato públicos.

Outra pauta pela democratização da informação discutida no I Diálogo está relacionada ao papel do acesso aberto para a divulgação científica em saúde, como contraponto às barreiras evidentes no sistema atual de disseminação do resultado de pesquisas. Juntamente com a Lei de Acesso à Informação (2011), o direito à informação foi defendido, em favor da transparência na disponibilização de dados sobre a gestão em saúde e do conhecimento científico. Para Rodrigo Murtinho, “quando nos referimos à democratização da comunicação e da informação, estamos falando da ampliação da pluralidade de vozes no debate público sobre saúde, da ampliação do acesso à população de informações sobre saúde e o SUS e do acesso aberto aos resultados das pesquisas científicas, financiadas com recursos públicos e publicadas em periódicos”.

Comunicação, informação e os princípios do SUS

Como apresentado, a comunicação e informação podem ser compreendidas de diferentes formas nas políticas públicas de saúde, sendo estruturante para os processos sociais, como destacam Janine Cardoso e Inesita Araújo, pesquisadoras do Laboratório de Comunicação e Saúde do Icict/Fiocruz, no livro “Comunicação e Saúde” (2007). Segundo as autoras, há também uma dimensão de caráter mais instrumental que se concentra na implementação de ações de divulgação de informação em saúde, ou seja, de transmissão linear de uma mensagem de um emissor para um receptor, por meio de campanhas preventivas, informativos e outros recursos. Mas que é, no entanto, uma perspectiva que dá pouca importância a aspectos fundamentais em qualquer prática comunicativa, como os contextos, as situações concretas em que a comunicação acontece, as pessoas reais que dela participam. Para as pesquisadoras, comunicar não é apenas passar informação, porque é sempre um processo social mais complexo, que envolve relações entre pessoas e grupos, identidades, projetos, diferenças de saber e poder.

Janine e Inesita propõem que o SUS seja eixo balizador para pensar a prática comunicativa em saúde, considerando os princípios doutrinários da universalidade, equidade e integralidade, bem como os organizativos de descentralização, hierarquização e participação. Assim como a universalidade estabelece a saúde como direito de todos, o mesmo deve acontecer com o direito à comunicação e informação, por exemplo. E se historicamente, no contexto das instituições de saúde, a população ocupou o lugar de receptora da comunicação institucional, com esse princípio do SUS, o acesso às informações deve ser ampliado para o exercício do controle social e com a participação da população, não apenas como destinatária, mas interlocutora no desenvolvimento de ações e pela transparência da gestão.

Estas possibilidades estão relacionadas aos desafios para o reconhecimento do que Francini Guizardi chama de potencialidade do SUS como um território de comunicação. “Avançamos pouco em termos da potencialidade do SUS como um espaço público de produção e circulação dos discursos, para além da comunicação institucional. Precisamos resgatar e valorizar a política e o sistema de saúde como um espaço dessa construção”, propõe a pesquisadora.

I Diálogo PenseSus

Nos dias 29 e 30 de setembro de 2015, o Icict/Fiocruz realizou o I Diálogo PenseSUS – Democracia, comunicação, informação e direito à saúde: mobilização para a 15ª Conferência Nacional de Saúde, no campus Manguinhos da Fundação (RJ). Idealizado como uma atividade preparatória da Fiocruz para a 15ª Conferência Nacional de Saúde, o I Diálogo reuniu diferentes atores sociais para debater questões atuais que permeiam os direitos humanos e as políticas de saúde em sua articulação com a comunicação e informação.

Na programação, além de uma conferência inicial com o tema “Reflexão e perspectivas para a participação social em saúde”, foram organizadas mesas-redondas, debatendo comunicação, informação e direitos humanos, direito à saúde, acesso aberto, democratização da mídia, descentralização, regionalização, articulação em rede e intersetorialidade nas políticas públicas.

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