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O dia em que Alice saiu da maternidade do Hospital Regional de Taguatinga (HRT, Distrito Federal) teve festa, bolo, docinhos e convidados de vários países. Sua mãe, a manicure Tatiane Almeida, 21 anos, não conseguia conter o sorriso de felicidade. “É uma vitória ver ela (sic) assim”, conta. Alice tinha então 2 meses e 27 dias de vida e 1.954 gramas, quase o triplo do peso com que nascera, em julho, após 27 semanas de gestação. Nos quase três meses em que passou lutando pela vida da filha, Tatiane foi ajudada, mas também pôde ajudar outras mães: ela virou doadora de leite humano.
A celebração também simbolizava os milhões de recém-nascidos atendidos diariamente pelos 218 Bancos de Leite Humano (BLHs) da Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano (rBLH-BR) e encerrava com chave de ouro a semana dos participantes do II Fórum ABC/Fiocruz/Ministério da Saúde de Cooperação Internacional em Bancos de Leite Humano, convidados de honra da festa.
O evento, realizado de 21 a 25 de setembro, visou consolidar as estratégias para os próximos cinco anos da Rede Latino-ibero-afro-americana de Bancos de Leite Humano, a rBLH, constituída pelo Brasil e 23 países membros, frente à Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, e estabelecer em diretrizes na Carta de Brasília 2015. Entre os nove itens acordados na Carta constam a própria nomenclatura da Rede, que passou a denominar-se Rede Global de Bancos de Leite Humano; a mobilização para oficializar a adoção do dia 19 de maio como Dia Mundial de Doação de Leite Humano, no âmbito da Organização Mundial da Saúde; além do compromisso de promover condições que ampliem o acesso ao leite humano, a fim de reduzir as mortes evitáveis de recém-nascidos e prevenir a ocorrência de doenças crônicas não transmissíveis, pontos inclusos nas metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Esta é a terceira Carta de diretrizes internacionais da Rede, que produziu documentos semelhantes em 2005 e 2010.
A Carta de Brasília 2015 foi assinada pelos representantes dos países que compõem a rBLH, o Ministério da Saúde do Brasil, a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), a Organização Pan-americana da Saúde (Opas) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), durante ato solene no dia 23, que ainda reuniu 32 embaixadas e 16 embaixadores no Memorial Juscelino Kubitscheck.
O evento marcou também os 30 anos de políticas públicas voltadas para o aleitamento materno e a doação de leite humano, iniciadas com a Política Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno (PNIAM), em 1985. De lá para cá, a quantidade de Bancos de Leite Humano (BLHs) no Brasil saltou de seis para 218, e as inovações do modelo brasileiro consolidaram um novo paradigma, que além de aprimorar a qualidade do leite humano, se destaca por fazer dos BLHs centros de proteção, promoção e apoio ao aleitamento materno. O reconhecimento, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), da Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano como uma das ações que mais contribuiu para a redução da mortalidade infantil no mundo na década de 1990, visibilizou o trabalho da Rede, tornando-a referência mundial no tema, e iniciando um processo que culminou na exportação dos seus princípios para 23 países da Península Ibérica, África, América Latina e Caribe.
Para acompanhar o evento, transmitido em tempo real pela internet, nove salas interativas foram implementadas, no Brasil e no exterior. O Fórum contou ainda com a participação da Presidência da Fiocruz; do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnologia em Saúde (Icict/Fiocruz); Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz); Governo do Distrito Federal; Secretaria de Saúde do Distrito Federal; Secretaria de Atenção à Saúde; e Coordenação-Geral de Saúde da Criança e Aleitamento Materno - Ministério da Saúde.
Durante a solenidade de assinatura da Carta de Brasília 2015, o diretor da ABC, embaixador João Almino, traçou um histórico da parceria entre a instituição e o Ministério da Saúde para tornar a cooperação internacional em Bancos de Leite Humano um exemplo de êxito. “A cooperação internacional em Bancos de Leite Humano é orgulho de todos nós brasileiros, pois apesar de ser uma construção originalmente brasileira, pertence a todos que fazem parte desta prática”, destacou.
Ao relembrar a trajetória da Rede Global Bancos de Leite Humano, o coordenador da rBLH João Aprigio Guerra de Almeida afirmou que os princípios que regem a cooperação internacional nasceram na construção da rede brasileira. “A Rede só faz com cada um dos países o que faz com o Brasil. É importante notar que não estamos falando de um país, mas de um oceano [de realidades regionais]”, destacou ele, lembrando que a cooperação horizontal, praticada no âmbito na rBLH, preza por transferir princípios a serem adaptados de acordo com a realidade de cada país, e não somente a tecnologia.
O presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, parabenizou as unidades da Fiocruz que ancoram a Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano, o Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira e o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnologia em Saúde. Ele ainda destacou o esforço da rBLH-Br, durante os 30 anos de Políticas Públicas em Aleitamento Materno, em inovar e modificar tecnologias e paradigmas em relação à segurança alimentar do recém-nascido. “Se dizia na época que chique era dar leite em pó. Leite humano era ultrapassado”, lembrou ele, ao discorrer sobre o paradigma vigente durante sua formação em medicina, nos anos 1970.
Por sua vez, o então ministro da saúde Arthur Chioro afirmou que a redução da mortalidade infantil foi fortemente influenciada pelos investimentos feitos no Sistema Único de Saúde (SUS), sendo a rBLH-Br a expressão do sucesso do SUS nesta área. “É talvez um dos investimentos mais sensíveis, com o melhor custo-benefício, que as sociedades podem oferecer às suas crianças. As pessoas acham que só porque a iniciativa é simples não tem complexidade”.
“É uma verdadeira rede de apoio mútuo, de amor e vínculo afetivo, de paz. Estamos aqui falando de uma sociedade mais respeitosa e amorosa, para a criação de um planeta melhor”, destacou a madrinha da rBLH-Br, a atriz Maria Paula.
Na cerimônia ainda foram entregues o Prêmio Jovem Pesquisador da rBLH e homenagens aos pioneiros da Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano e aos países que se destacaram em diferentes setores na rBLH. A Opas também homenageou a Fiocruz e o Ministério do Saúde pelo apoio à rBLH, e o Ministério da Saúde reconheceu os serviços prestados pelo coordenador da Rede, João Aprigio Guerra de Almeida, para a construção e implementação da Rede Global de Bancos de Leite Humano.
O evento também foi oportunidade para o lançamento de Fórum Virtual de Mobilização Social em favor da doação do leite humano e do Selo Fiocruz/OPAS de Qualidade, uma certificação anual para aferir a qualidade dos recursos humanos, da informação e das instalações dos BLHs.
O protagonismo resultante dos impactos positivos na saúde materno-infantil que a rBLH construiu diante dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) – especialmente em relação ao quarto objetivo, referente à redução da mortalidade infantil – deve se manter diante das novas metas estabelecidas pela Organização das Nações Unidas (ONU), os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Os BLHs são reconhecidos como uma das estratégias mais eficientes para a redução da mortalidade infantil, que no Brasil diminuiu 73% desde 1990.
O relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef) Committing to Child Survival indica que a taxa de mortalidade infantil em todo o mundo caiu 53% entre 1990 e 2015. Contudo, ainda é necessário manter o objetivo em foco para que a meta de redução da mortalidade infantil em dois terços seja atingida. Assim, o Unicef propôs que esta meta fosse renovada na proposição do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 3: “Garantir uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades”. Se a meta for alcançada, a estimativa do Fundo é que 38 milhões de crianças serão salvas de 2016 a 2030.
Embora a saúde materno-infantil seja um componente transversal, além da terceira meta, dentre os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a Rede se encaixa em pelo menos outros dois: erradicação da fome e parceria pelas metas. Na abertura do Fórum, o diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz), Paulo Buss, destacou a importância de estar alinhado com a nova Agenda 2030 para ampliar os horizontes da Rede. “O trabalho de vocês é maravilhoso, vamos defender este trabalho, mas não sejamos ingênuos: vamos ficar ligados nisso [nos ODS e na nova Agenda 2030] para que a rBLH prospere”.
Buss explicou o contexto do desafio com o qual a civilização se depara: vivemos uma concentração de renda inédita, em que os Estados assumem as dívidas privadas, socializando os prejuízos - embora os lucros continuem privados - e reduzem os investimentos públicos e orçamentos sociais, inclusive da saúde, aprofundando as desigualdades existentes. “Isso é sério e está começando a acontecer no Brasil este ano. Não pense que o [recém-nascido de] baixo peso e a prematuridade não estão relacionados com isso. Este é o fundo sobre o qual cresce a pobreza, o desemprego, o desnutrido. O baixo peso não é uma questão iminentemente biológica (também é), mas é ainda uma questão social”, declarou, explicando que os orçamentos da Saúde e da Educação são mitigadores da crise econômica e, assim, não deveriam ser reduzidos.
De acordo com ele, a cooperação exercida pela rBLH pode ir além da transferência de princípios em uma área, sendo utilizada nos países parceiros para o fortalecimento do sistema de saúde como um todo. “Nós devemos utilizar a experiência da cooperação internacional do banco de leite humano para fortalecer o próprio sistema”.
Para o representante da OPAS/OMS no Brasil, Luis Codina, o trabalho em rede realizado pela rBLH tem muito a contribuir com a execução da Agenda 2030. Isso porque a experiência construída com intercâmbio, tanto no Brasil quanto no exterior, sem perder a qualidade do processo, são elementos fundamentais para que os países atinjam as metas propostas. “Precisamos de muita ética e solidariedade – que estamos perdendo e precisamos recuperar. A Rede pode ajudar, pois é um caso exemplar de solidariedade entre povos”, disse.
Independentemente dos estímulos oriundos da sintonia com nova uma Agenda 2030, o futuro da Rede já está sendo escrito, por histórias como a de Alice, nos 292 BLHs implantados ao redor do Planeta. No total, os Bancos de Leite Humano da Rede Global beneficiaram 1.264.497 recém-nascidos entre 2009 e 2014 e ajudaram mais de 12 milhões de mãe a prosseguirem amamentado. Mas pouco importa a megalomania dos números: mesmo que seja para salvar a vida de apenas uma criança, o esforço de solidariedade em rede já vale a pena.
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